6.23.2009

crónicas de engate (7)

as duas torres

Gosto do murmúrio das folhas das árvores no Verão, aquele que me chega numa tímida dança das suas sombras frescas com farrapos da luz do Sol. Hoje passeei-me por aí, de manhã, e deitei-me num tapete de relva para o ouvir.
Gosto das duas torres que se esticam para tentar tocar as nuvens. São como um casal idoso que já não se toca mas também não se aparta e acho que se calhar o amor às vezes é só isso: o outro fazer-nos falta.
Gosto do avião que vi riscar o céu, e que aparecia e desaparecia entre as folhas da árvore que me segredou a história dessas torres. É uma história tão simples, quase infantil, como outra história de amor qualquer.

No último andar duma das torres, uma mulher pousou as malas e os caixotes com todos os seus haveres. Estava ansiosa por começar a arrumar tudo, pois poder viver tão perto das nuvens era a realização dum sonho antigo, e como se por um instante acreditasse que lhes podia tocar, abriu uma das janelas daquele vigésimo andar e esticou o dedo em direcção ao céu. Não lhes tocou mas disse adeus ao avião que ia a passar.
No último andar da outra torre, já o pó se acumulara sobre as malas e os caixotes do homem que ali vivia. Ao contrário dela, ele tinha ido para ali para se isolar e não por causa de sonho algum, que queria esquecer um amor antigo e achava que um vigésimo andar o podia ajudar. Aliás, por ter uma vontade enorme de se afastar de tudo e de todos, apenas os aviões o fascinavam, e só ia à janela quando sentia que um estava a passar. Dessa vez, para além do avião, viu uma mulher na janela em frente a tentar tocar nas nuvens...
Consta que se apaixonaram e que ainda hoje vivem ali, tal como as duas torres, sem se tocarem mas sentindo a falta um do outro cada vez que um deles não vai à janela.

Gosto dos pássaros que fazem ninho nos edifícios decrépitos que envolvem o jardim. É como se eles não ligassem a essa ofensa da cidade que é a construção exacerbada. Hoje passeei-me por aí e, enquanto os via a brincar nas janelas abandonadas dum prédio em construção, pensei nesta história das torres. Talvez de certa forma seja também uma história minha...

8 comentários:

Anónimo disse...

Lindo, amei!! Que coisa bonita, quanta sensibilidade...

Gosto deste cantinho.

Ainda estou a aprender a saborear o chocolate aos poucos, LOL! Embora, na maioria das vezes, eu devore 6 bombons em um só dia, eheheh.

E, confesso que saboreei esta crônica assim, lentamente, imaginando os detalhes, sentindo-a por completo. Você tem este dom.

Um beijo!

Bichana disse...

um post 5 estrelas. encantador!

Ivar C disse...

gigi, o melhor é saborear aos poucos mas, uma vez por outra, dar uma dentada mais forte. :)

bichana, obrigado. :)

Anónimo disse...

Eheheh gostei da "dentada mais forte" :-D

Ivar C disse...

gigi, não era só uma piada, lol. :)

ciii disse...

hmmm.. em vez de um "foste citado", um "tirei-te as palavras do blog" ;) eu bem por cá ando a ler em silêncio quase sempre, mas há coisas a que não resisto :) diverte-te logo ^^

Olga disse...

Mais um que me deixou sem palavras. :)

Ivar C disse...

cii, obrigado. :)

olga, obrigado. :)