7.16.2008

homens temporariamente sós

Só há homens no bar onde agora entro. Talvez por estarem sempre, do outro lado do balcão, duas mulheres bonitas. Ao meu lado esquerdo o álcool secou um homem de bigode. Secou-lhe o corpo por dentro, secou-lhe a voz e as mãos que ainda seguram um copo de cerveja cansado. Só não lhe secou os olhos. Ao meu lado direito dois tipos mantêm uma conversa numa intensidade sonora acima do normal. Já olharam para mim, pelo canto do olho, e não acredito que falem realmente entre eles. Falam para as mulheres que ali trabalham, embora não o assumam.
Tiro uma esferográfica do bolso e um caderninho da mala do computador. Começo a escrever o que vai ser este texto. Uma das empregadas, que deve ser cabo-verdiana, aproxima-se em silêncio. Aproveito essa abstinência da fala para lhe observar a quietude dos lábios. São tão bonitos. Uma Super Bock, por favor. Ela dá-me uma garrafa gelada e eu toco-lhe os dedos quentes. Apetecia-me agarrar aquela mão a noite toda. É tão bonita, a mão.
Se tenho um cigarro, pergunta-me o homem seco num esforço enorme para levantar a cabeça. Que não fumo, respondo. E a cabeça cai de novo entre os seus braços apoiados no balcão, e o copo cai alagando o que sobrava duma noite já perdida. Uma das mulheres expulsa-o delicadamente do bar. Ele sai, desamparado pela vida, e pergunta-me de novo se tenho um cigarro. Que não fumo, respondo como se fosse a primeira vez.
Lembro-me duma música dos GNR que agora percebo tão bem que preferia não me lembrar. Homens temporariamente sós. Homens sempre sós preferem perder, homens sempre sós são bolas de ténis no ar, muito abatidos saltam e acabam por enganar, homens sempre sós nunca conseguem casar.
Estou ansiosamente à espera dum telefonema para não dormir sozinho hoje, mas a esperança de ouvir o telefone tocar vai-se esbatendo nas horas que passam. Olho de novo para o ecrã. Não há nenhuma chamada não atendida. Faltam quinze minutos para o comboio que me vai levar a Aveiro. Dá para beber outra Super Bock. Talvez ela telefone durante a viagem. Talvez não. O mais certo é que não. Torno a pousar os meus olhos nos lábios da empregada cabo-verdiana e os meus dedos nos dedos dela. Temporariamente. Prometo não fazer um retrato da solidão interior. Não há qualquer tragédia mas uma cerveja a beber. Homens sempre sós preferem perder.

bar Estado Líquido, Espinho, Julho 2008

16 comentários:

Anónimo disse...

Já foi o tempo em que o Estado Líquido não era assim. Mas esse tempo já foi há muito tempo.

*
mariana

Xantipa disse...

Muito bonito, este texto.
Bj

Clara disse...

Caramba! Mas que texto tão bonito!
Bjs

Pax disse...

Eu acho que esse senhor (o que está entre o do cigarro e os da conversa) está a precisar de mudar de hábitos (e não, não me refiro a começar a fumar).
:)

Paula disse...

tem dias que também eu espero por esse telefonema, mas ele nunca vem...

Anónimo disse...

Adorei este texto. Mai nada :)

Mary

Unknown disse...

Tão bonito. Parabéns!

Anónimo disse...

Muito bonito [Opinião de uma mulher temporariamente (ou permanentemente?) só ;)]

Anónimo disse...

parabéns pelo texto, bonito melancólico... parabéns mesmo :))

Ivar C disse...

mariana, só comecei a ir lá agora, desde que a estação mudou para ali... é um degredo mas eu gosto. :)

xantipa, obrigado, ;) bjs

clara, obrigado, bjs. :)

pax, beber uma cerveja num bar deste dá-me um prazer especial. fumar, tens razão, não gosto. :)

paula, este telefonemas vêm às vezes... mas não caem do céu. :)

mary, obrigado. :)

joana, obrigado. :)

isabel, temporariamente... porque à permanência só chegamos quando morremos. obrigado :)

that's all follks, obrigado. :)

Red disse...

belo texto.

(e os GNR sao grandes. ainda ha pouquinho tempo fui ve-los com a GNR :D )

- disse...

estranhamente familiar, com a excepção que sou rapariga de sagres... e fumo "socialmente"...

PS: porquê esperar um convite? porque não tomar iniciativa?

CCF disse...

Todos estamos temporariamente sós. Quase todos à espera de um telefonema qualquer que nos transporte a um outro lado do mundo. Gostei.
~CC~

Ivar C disse...

red, eu gostava de ter visto isso. :)

arco íris negro, Sagres tb pode ser. :)

ccf, quase todos, se calhar. :)

Gato Aurélio disse...

a solidão tambem pode ser viciante...
acredita...
;O)

Ivar C disse...

gato aurélio, já aprendi isso, sim... e estou preocupado. :)