7.28.2014

respostas a perguntas inexistentes (288)

Lembro-me perfeitamente da primeira casa onde vivi e de onde saí definitivamente antes dos dois anos de idade. Tendo em conta este último facto, acredito que a frescura dessa memória seja apenas uma concepção minha. Uma mentira que eu imaginei tantas vezes que passei a acreditar nela. Ainda assim é a memória da minha primeira casa e, por qualquer motivo que nem sequer consigo explicar muito bem, é importante.
Uma porta velha de madeira escondia-se num muro sujo que dava para um pequeno caminho cimentado. À esquerda dele ficava um terreno onde crescia uma árvore de fruto e à direita a casa propriamente dita. Na casa entrávamos pela cozinha e, depois dela num corredor que desaguava em todas as divisões da casa: uma casa de banho, quatro quartos e uma sala pequena.
A memória que eu tenho desta casa, de onde saí há pouco mais de quarenta e um anos, é similar à memória da primeira namorada que tive. Sei que ela existiu, mas admito que ponho a hipótese de eu próprio ter criado grande parte das memórias que tenho dela. Era bonita e envergonhada. Costumava tapar a cara com a própria mão, num gesto que surgia por impulso sempre que por acaso era o centro das atenções. Também se ria nervosamente. Às vezes ainda tenho algumas saudades dela.
A minha primeira casa já não existe. Deu lugar a um edifício de quatro ou cinco andares na estrada de São Bernardo, para quem conhece Aveiro. Passei lá há uns dias e encostei o carro, só para me certificar que é exactamente ali que está sediada a minha memória. Depois ri-me do tempo que passa e arranquei.
A minha primeira namorada também já não existe. Passei por ela há uns dias, na fila para pagamento duma pastelaria no centro da cidade, e ela nem sequer me reconheceu. Observei-a a sair, depois de lhe ter dito "olá" e ela ter respondido com aquele sorriso nervoso de que me lembro tão bem, para ter a certeza que é exactamente nela que está sediada a minha memória. Depois ri-me do tempo que passa e arranquei.

4 comentários:

redonda disse...

Pensei que ela tivesse morrido para já não existir, mas depois ela ria da mesma maneira, portanto ainda existe, ainda é ela :)
um beijinho e uma boa semana

Anónimo disse...

Gostei desta viagem aos teus primórdios.
"Uma mentira que eu imaginei tantas vezes que passei a acreditar nela."
Pois... acontece. Por vezes a nosssa imaginação é tanta que nos perdemos no meio dela. É bom quando temos essa consciência - a de que o que recordamos poder não corresponder efetivamente ao que se passou, ou ao que se passa. Se, por um lado, o tempo vai desbotando as nossas memórias, tal qual uma peça de roupa que, de tanto ser lavada, vai perdendo a sua cor. Por outro, a nossa vontade em que algo aconteça é tanta, que por vezes vemos, que é o mesmo que dizer que imaginamos, coisas onde elas não existem. Ah, e depois existem aquelas recordações que, de um modo inconsciente, vão sendo apagadas da nossa memória tal é o desconforto que as mesmas nos causam.
Que as boas recordações permaneçam na nossa mente e resistam à passagem do tempo. Quanto às más, contemos com a ajuda do tempo para as apagar da nossa memória.

Anónimo disse...

Achas tu que não te reconheceu... há ex-namorados que também "deixei de reconhecer"...

Ivar C disse...

redonda, bom pensamento. :)


maria mundo, é isso mesmo. :)

anónimo, eu não deixo de reconhecer ninguém... :)