open, close, play
Pega-se num cd da estante da sala e caminha-se, com ele balançando entre o polegar e o indicador da mão direita, até à cozinha. Open. A tampa da mini hi-fi abre tão devagar que parece que naquele momento cabia uma vida. Close. Play. Open, close, play: três passos que qualquer divorciado já deu. Open quando casou e acreditou que valia a pena, close quando se divorciou e acreditou que nada vale a pena, play quando começo a respirar a outra vez. Talvez valha a pena, pensa-se. Música vocal cigana do princípio do século já se espalhou pelos cantos da cozinha. Monocórdica, como uma tarde que se escreve involuntariamente só.
Open. Uma mulher é sempre open. Mesmo uma que se cruzou connosco num autocarro, e é tão bonita; levantou-se antecipadamente para sair depois dum túnel, e é tão bonita; foi batendo com o polegar no corrimão vertical em que tocou a campainha, e é tão bonita; olhou-nos de relance quando as portas abriram, e é tão bonita. Saiu: close. Era tão bonita.
Play, o bicho continua em movimento tortuoso serpenteando a cidade. Com mais fome. Engole pessoas pela porta da frente e vomita-as pela porta de trás, sem ligar merda nenhuma à minha vontade de ter ficado estacionado no momento em que os nossos olhos se cruzaram, e ela era tão bonita. Os autocarros não estacionam, o tempo não estaciona, as relações também não. Vivemos e temos que decidir tudo em andamento. Open, close, play. Open, close, play...
Se eu lhe pudesse dizer alguma coisa era open. Agradecia-lhe a existência e ter-se cruzado comigo neste mundo tão povoado, e de me ter povoado a mim. Tanto, ainda que pouco. Que eu sou um cais, pois, onde a fugacidade se atraca com a força dum navio petroleiro. Pois sou: um cais deserto onde à noite vou fumando as nuvens que poluem o horizonte, desenhando-a hirta, batendo com o polegar ao ritmo duma música qualquer. Uma música qualquer? Não, talvez uma música cigana, vocal e monocórdica, que se espalha em momentos involuntariamente sós. Open, Close, Play.
11 comentários:
o gajo é artista!
acho... acho mesmo que é um dos melhores textos teus que já li.
não acho. tenho a certeza.
lol, fausta. obrigado. já posso editar outro livro, um dia destes... ;)
Não necessariamente, com essa dinâmica. Open, play, close, também pode ser interessante.
Gostei...gostei muito! A vida é feitas desses momentos e, se pudesse, tambem muitas vezes parava o tempo no exacto instante em que eles acontecem....
Beijos
"uma mulher é sempre open"
... e desta vez não meteste secreções na coisa!
mesmo assim saíu fascinante, Ivarzinho! Será efeito do baixo nível do índice?
(esta sim, sou eu... que mania de confundir as personagens!)
karla, neste caso acho interessante, até muito... ;)
obrigado nina :)
fausta... desculpa lá ter-te confundido... nem sei que te diga. :)
Gostei muito. Tem um ritmo muito equilibrado e a leveza dos mundos densos que se tentam abrir e play.
O close já passou :)
olá
Vai atrás dela procura-a não te fiques pelo se...
vague, obrigado... ;)
olá, osmi.
asdrubal, se tudo fosse assim tão fácil... o mundo era melhor. :)
O segredo é mesmo esse é enfrentar as dificuldades por maiores que elas sejam
Enviar um comentário