sofás
Tenho um amigo com quem só estou de vez em quando, talvez duas ou três vezes por ano, mas com quem continuo conversas como se tivessem sido interrompidas apenas uma hora antes. Talvez seja um pouco estranho, mas quando o vejo é como se todos aqueles meses que estive sem o ver simplesmente desaparecessem. À superfície da minha memória vêm os últimos momentos em que estive com ele, e tudo o resta mergulha nas profundezas do meu cérebro como pedras no maior dos oceanos.
Ontem, por exemplo, quando me sentei num dos sofás que ele tem na cozinha (sim, ele tem dois sofás singulares na cozinha) tornei a levantar-me imediatamente para ir buscar a garrafa de uísque que ele tinha guardado numa das portas dos armários na última vez que lá estive, talvez há uns quatro meses. E lá estava ela, ainda a meio, à espera de despejar o seu conteúdo sobre as nossas palavras. Tirei também dois copos e servi-nos aos dois.
Quem decidiu pôr os dois sofás na cozinha não foi o André, assim se chama ele, mas sim a sua ex-mulher, quando os dois partilhavam aquele espaço durante a noite toda a seguir ao jantar, entre uma bebida e conversas ocasionais. Era, de facto, um casal que estava na cozinha mais do que noutra qualquer divisão da casa, e eu próprio cheguei a testemunhar isso.
Às vezes, nos dias que correm, ainda o vejo a tocar os sofás, em silêncio, como se assim pudesse também tocar um pouco do seu passado com ela. Mas não pode, e foi assim que ontem começámos mais uma conversa, precisamente onde tinha acabado a última há muito tempo atrás. No seu divórcio e nos motivos que o levaram a nunca mais conseguir estar com uma mulher. Dei o primeiro gole na garrafa de Bushmills (a garrafa ainda lá estava porque ele sabe que aquela marca de uísque é para as nossas conversas) e perguntei-lhe se ele, de facto, nunca tinha sentido uma atracção que fosse. Afinal de contas, concluí simplificando a coisa ao máximo, há tantas mulheres bonitas e interessantes por aí...
Ele também deu um gole prolongado antes de responder, como se tivesse a resposta toda na ponta da língua e quisesse apenas lubrificá-la antes de a transmitir. Foi então que me falou da tese mais estranha sobre paixão que já ouvi.
Diz ele que se farta de ver mulheres muito bonitas, cuja beleza o sufoca assim que as vê, mas que nunca tenta nada com elas porque simplesmente não acredita nesse tipo de paixão. A beleza é como o chocolate, disse, é doce mas pode enjoar. O André quer começar a sentir-se apaixonado por uma mulher apenas dois ou três meses depois de a conhecer. Devagarinho, como ele repetiu insistentemente, de forma a perceber que também ela se apaixona por ele da mesma maneira.
- Isso não é ser esquisito? - perguntei enquanto enchia de novo os copos.
- O Amor é como uma bola de neve. Se não estiver sempre a crescer, desfaz-se.
- É ser esquisito, sim. - concluí.
- Sabes porque é que somos amigos há mais de vinte anos? - Tocou de novo no sofá como se estivesse a tocar o passado, desta vez o nosso.
- Porque nos damos bem.
- Porque somos amigos lentos um com o outro. Não exigimos nada um do outro a não ser honestidade e companhia de vez em quando. É mais ou menos assim que eu me quero apaixonar, mas por uma mulher.
Dei-lhe uma certa razão na questão da bola de neve, embora por outro prisma. Vamos ficando cada vez mais exigentes com as relações que temos, e por isso talvez vá sendo cada vez mais difícil começar uma nova. Se eu acabasse a minha relação actual, não faço a mínima ideia do tempo que ia precisar para começar outra, concluí. Talvez muitos anos também. Depois fizemos silêncio, e será desse silêncio que nossa próxima conversa começará, talvez daqui a uns meses...
Ontem, por exemplo, quando me sentei num dos sofás que ele tem na cozinha (sim, ele tem dois sofás singulares na cozinha) tornei a levantar-me imediatamente para ir buscar a garrafa de uísque que ele tinha guardado numa das portas dos armários na última vez que lá estive, talvez há uns quatro meses. E lá estava ela, ainda a meio, à espera de despejar o seu conteúdo sobre as nossas palavras. Tirei também dois copos e servi-nos aos dois.
Quem decidiu pôr os dois sofás na cozinha não foi o André, assim se chama ele, mas sim a sua ex-mulher, quando os dois partilhavam aquele espaço durante a noite toda a seguir ao jantar, entre uma bebida e conversas ocasionais. Era, de facto, um casal que estava na cozinha mais do que noutra qualquer divisão da casa, e eu próprio cheguei a testemunhar isso.
Às vezes, nos dias que correm, ainda o vejo a tocar os sofás, em silêncio, como se assim pudesse também tocar um pouco do seu passado com ela. Mas não pode, e foi assim que ontem começámos mais uma conversa, precisamente onde tinha acabado a última há muito tempo atrás. No seu divórcio e nos motivos que o levaram a nunca mais conseguir estar com uma mulher. Dei o primeiro gole na garrafa de Bushmills (a garrafa ainda lá estava porque ele sabe que aquela marca de uísque é para as nossas conversas) e perguntei-lhe se ele, de facto, nunca tinha sentido uma atracção que fosse. Afinal de contas, concluí simplificando a coisa ao máximo, há tantas mulheres bonitas e interessantes por aí...
Ele também deu um gole prolongado antes de responder, como se tivesse a resposta toda na ponta da língua e quisesse apenas lubrificá-la antes de a transmitir. Foi então que me falou da tese mais estranha sobre paixão que já ouvi.
Diz ele que se farta de ver mulheres muito bonitas, cuja beleza o sufoca assim que as vê, mas que nunca tenta nada com elas porque simplesmente não acredita nesse tipo de paixão. A beleza é como o chocolate, disse, é doce mas pode enjoar. O André quer começar a sentir-se apaixonado por uma mulher apenas dois ou três meses depois de a conhecer. Devagarinho, como ele repetiu insistentemente, de forma a perceber que também ela se apaixona por ele da mesma maneira.
- Isso não é ser esquisito? - perguntei enquanto enchia de novo os copos.
- O Amor é como uma bola de neve. Se não estiver sempre a crescer, desfaz-se.
- É ser esquisito, sim. - concluí.
- Sabes porque é que somos amigos há mais de vinte anos? - Tocou de novo no sofá como se estivesse a tocar o passado, desta vez o nosso.
- Porque nos damos bem.
- Porque somos amigos lentos um com o outro. Não exigimos nada um do outro a não ser honestidade e companhia de vez em quando. É mais ou menos assim que eu me quero apaixonar, mas por uma mulher.
Dei-lhe uma certa razão na questão da bola de neve, embora por outro prisma. Vamos ficando cada vez mais exigentes com as relações que temos, e por isso talvez vá sendo cada vez mais difícil começar uma nova. Se eu acabasse a minha relação actual, não faço a mínima ideia do tempo que ia precisar para começar outra, concluí. Talvez muitos anos também. Depois fizemos silêncio, e será desse silêncio que nossa próxima conversa começará, talvez daqui a uns meses...
24 comentários:
Excelente.
Sempre cá, sempre cá.
Emocionante.
:)
Este texto é extremamente interessante... e intrigante.
eli, obrigado. :)
elisabete, obrigado. :)
"...somos amigos lentos um com o outro..."
Muito bom.
Excelente. Adorei.
EJSantos
Também tenho um assim... Um sofá branco :)
Eu quero esse Homem para mim! Consegue descrever por palavras aquilo que sinto há muito,muito tempo!
Lúcia V.
ejsantos, obrigado. :)
josh gottam, bem... às tantas adiro à moda. :)
lúcia v, :)
Que estranho... a mim, o chocolate nunca me enjoou e já o namoro há uma data de anos ;)
Gostei muito deste texto!
Penso q não seja uma questão de exigência, mas sim de experiência de saber o q realmente importa, o q é duradouro, o q nos faz feliz de verdade... Mesmo quando a beleza se foi, o tempo passa devagar e as emoções se tornam mais "lentas", mas muito mais fortes...
Obrigada!
queriadeti.blogspot.com
Gostei dessa teoria do amor ser como uma bola de neve...
Parece-me um gajo muito sábio, e já agora sensível. Gosto desses.:)
Mam'Zelle Moustache, lol! é como eu. :)
cristina oliveira, obrigado. :)
A Vida da Cinderela de Saltos Altos, é uma tese, até. :)
ac, lol. :)
PERFEITO!!
Eu não teria encontrado melhor definição para a fase "estranha" em que tambem me encontro....
MUITO BOM
Quase nos "entas", obrigado. :)
Este blog é do melhor que tenho lido nos últimos meses. Versátil nas rubricas e cheio de poesia diária. Uma lufada de ar fresco entre oceanos de futilidade. Obrigada, obrigada.
Linhas Cruzadas, eu é que agradeço. A presença e a simpatia. :)
Gostei imenso deste texto. A tese do amor é tão tranquila que acaba por fazer sentido. :)
BubbleGum, obrigado. :)
Gostei tanto que vou utilizar o teu texto no meu blogue com a devida indicação de onde veio claro!!
Obrigada
Muito bom.
Mas a singularidade do amor faz com que cada um tenha a sua própria definição de amor, do apaixonar-se.
quase nos "entas", eu agradeço. :)
jingas, obrigado. com certeza que sim. :)
Talvez de gerações diferentes não sei...mas como entendo perfeitamente esse teu amigo...oh se o entendo e tem toda a razão!
Foi um dos melhores "tiro ao alvo" que escreveste ultimamente.
Adorei...e maisnada!
fatyly, obrigado. :)
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