pensamentos catatónicos (276)
feijoada de búzios
Ao vento, a toalha de papel mostra-se irrequieta como uma ave que bate as asas para levantar voo e não consegue. Naquele caso em particular, não consegue por causa dos dois pratos colocados frente a frente na mesa mais bem situada da esplanada, e também da panela de barro com duas doses fumegantes de feijoada de búzios. Ela levanta o testo e dá-lhe permissão, através dum simples abrir e fechar de olhos, para se servir primeiro, mas ele decide pegar antes no prato dela. É o primeiro motivo para a discussão que vem logo a seguir.
- Já devias saber que não gosto que me sirvam.
Ele sorri para dentro, como se assim pudesse engolir o nervoso miudinho. Continua a encher o prato e depois troca-o pelo dele, de forma a que ela fique de novo com o vazio. Quantas coisas sobre aquela mulher é que ele deve, de facto, saber? Acima de tudo, que coisas sobre ela é que é suposto saber? Pica os primeiros feijões com o garfo enquanto, como um rádio mal sintonizado ao fundo, ela continua o seu protesto.
Não tem a certeza, mas talvez ele a tenha servido primeiro de propósito, precisamente para que ela pudesse soltar essa latente raiva que lhe vinha desenhando a face e moldando os gestos desde manhã. Da esplanada avistam-se as longas filas de macieiras alinhadas num dos montes, que mais parecem uma obra desenhada a régua e esquadro, cortadas por um tapete de alcatrão que serpenteia a paisagem até desaparecer no horizonte. Noutro monte, mais à esquerda, algumas e raras amoreiras povoam os terrenos riscados pelo arado dum tractor. Tudo está exactamente como há dez anos, quando eles se conheceram naquele mesmo local durante uma festa de amigos comuns e, adivinhando a paixão à primeira vista, acabaram por sair sorrateiramente para ficarem sozinhos. Tudo, até o céu de claras aguarelas azuis e brancas. Menos ela.
A deterioração daqueles almoços anuais, cada vez menos felizes e feitos mais por obrigação do que outra coisa qualquer, têm sido o barómetro que mede a relação dos dois. Ele acha que a culpa é do tempo, esses dez anos em que ele passou a ter que saber muitas coisas mesquinhas sobre ela. Aproveita o silêncio cansado dela e escreve na própria toalha de papel algumas dessas coisas.
1) Não misturar as embalagens de leite magro com as de leito meio gordo.
2) Não abrir a cama à noite, antes de se deitarem, apenas de um dos lados.
3) Ligar a máquina de café todas as manhã assim que entrar na cozinha.
4) Amarfanhar as garrafas de plástico antes de as colocar na reciclagem.
5) Não deixar os sapatos em cima da balança da casa de banho.
6) Não a abraçar por trás quando ela está a descascar fruta.
7) Não a beijar na testa quando ela está a ver televisão.
8) Não misturar os copos de champanhe com os copos de uísque.
9) Não entrar no carro sem puxar para trás o banco onde ela se vai sentar.
10) Não a servir quando estão a jantar juntos.
Rasga aquele pequeno pedaço de papel e põe-lho quase à frente dos olhos, mesmo ao lado do prato. Algumas gotas do molho da feijoada pontilham-no como se o quisessem ferir. Ela olha para ele enquanto mastiga um búzio mais difícil de roer do que os restantes.
- Estes foram os motivos pelos quais discutimos as últimas dez vezes. - diz, enquanto se levanta para se aproximar dum dos muros da esplanada. Dali, parece que quase pode tocar o céu com a ponta dos dedos. Ri-se de novo para dentro.
Ela ainda mastiga o mesmo búzio. É isto que ela quer que ele saiba sobre ela?
Ao vento, a toalha de papel mostra-se irrequieta como uma ave que bate as asas para levantar voo e não consegue. Naquele caso em particular, não consegue por causa dos dois pratos colocados frente a frente na mesa mais bem situada da esplanada, e também da panela de barro com duas doses fumegantes de feijoada de búzios. Ela levanta o testo e dá-lhe permissão, através dum simples abrir e fechar de olhos, para se servir primeiro, mas ele decide pegar antes no prato dela. É o primeiro motivo para a discussão que vem logo a seguir.
- Já devias saber que não gosto que me sirvam.
Ele sorri para dentro, como se assim pudesse engolir o nervoso miudinho. Continua a encher o prato e depois troca-o pelo dele, de forma a que ela fique de novo com o vazio. Quantas coisas sobre aquela mulher é que ele deve, de facto, saber? Acima de tudo, que coisas sobre ela é que é suposto saber? Pica os primeiros feijões com o garfo enquanto, como um rádio mal sintonizado ao fundo, ela continua o seu protesto.
Não tem a certeza, mas talvez ele a tenha servido primeiro de propósito, precisamente para que ela pudesse soltar essa latente raiva que lhe vinha desenhando a face e moldando os gestos desde manhã. Da esplanada avistam-se as longas filas de macieiras alinhadas num dos montes, que mais parecem uma obra desenhada a régua e esquadro, cortadas por um tapete de alcatrão que serpenteia a paisagem até desaparecer no horizonte. Noutro monte, mais à esquerda, algumas e raras amoreiras povoam os terrenos riscados pelo arado dum tractor. Tudo está exactamente como há dez anos, quando eles se conheceram naquele mesmo local durante uma festa de amigos comuns e, adivinhando a paixão à primeira vista, acabaram por sair sorrateiramente para ficarem sozinhos. Tudo, até o céu de claras aguarelas azuis e brancas. Menos ela.
A deterioração daqueles almoços anuais, cada vez menos felizes e feitos mais por obrigação do que outra coisa qualquer, têm sido o barómetro que mede a relação dos dois. Ele acha que a culpa é do tempo, esses dez anos em que ele passou a ter que saber muitas coisas mesquinhas sobre ela. Aproveita o silêncio cansado dela e escreve na própria toalha de papel algumas dessas coisas.
1) Não misturar as embalagens de leite magro com as de leito meio gordo.
2) Não abrir a cama à noite, antes de se deitarem, apenas de um dos lados.
3) Ligar a máquina de café todas as manhã assim que entrar na cozinha.
4) Amarfanhar as garrafas de plástico antes de as colocar na reciclagem.
5) Não deixar os sapatos em cima da balança da casa de banho.
6) Não a abraçar por trás quando ela está a descascar fruta.
7) Não a beijar na testa quando ela está a ver televisão.
8) Não misturar os copos de champanhe com os copos de uísque.
9) Não entrar no carro sem puxar para trás o banco onde ela se vai sentar.
10) Não a servir quando estão a jantar juntos.
Rasga aquele pequeno pedaço de papel e põe-lho quase à frente dos olhos, mesmo ao lado do prato. Algumas gotas do molho da feijoada pontilham-no como se o quisessem ferir. Ela olha para ele enquanto mastiga um búzio mais difícil de roer do que os restantes.
- Estes foram os motivos pelos quais discutimos as últimas dez vezes. - diz, enquanto se levanta para se aproximar dum dos muros da esplanada. Dali, parece que quase pode tocar o céu com a ponta dos dedos. Ri-se de novo para dentro.
Ela ainda mastiga o mesmo búzio. É isto que ela quer que ele saiba sobre ela?
20 comentários:
Nunca tinha pensado nisto. Mas realmente é verdadeiro.
São estas coisas que não tem qualquer valor que as mulheres acham que os homens deviam saber sobre elas.
Quando na verdade há um mundo de outros factos com valor sobre elas que esses é que deviam os homens saber.
Hoje levo daqui um lição para a vida!
margarida, esta é uma sensação que às vezes me assalta. mais nada... não significa que seja sempre assim ou que seja assim com todas as mulheres. :)
Há algumas mulheres que sempre souberam que por mais picuinhices que tenham e birrinhas que façam vai estar sempre ali um "capacho" pronto baixar as orelhas e a satisfazer as suas vontades. Quanto mais se tem, menos valor se sabe dar ao que realmente é importante.
A boa notícia é que de facto nem todas as mulheres são picuinhas, nem todos os homens são capachos. :)
Adorei o texto e ainda mais a conclusão. Sendo mulher nunca tinha pensado nisso, mas a realidade é que damos tanto a conhecer e ao mesmo tempo quase nunca nos mostramos realmente. Vou tentar aplicar a lição que deste aqui...talvez assim as relações vivam ao invés de sobreviverem.
Ai, Jesus! Eu e a minha mulher damo-nos tão bem!...
Acho que não teria paciencia para uma mulher como acabaste de descrever. Que seeeecccaaaa!
EJSantos
Eu acho que apenas queremos ter a certeza que "nos"tomam atenção....como nós tomamos aos detalhes deles....
Mais um texto magnifico :)
olga, plenamente de acordo. :)
maniac, pelo menos com a vida das relações, e não a sua sobrevivência, concordo plenamente. :)
ejsantos, lol. boa sorte. :)
quase nos "entas", obrigado. :)
Os homens são diferentes das mulheres e vie-versa. Parece-me que aqui há consenso.
Nós, apesar de todas diferentes, temos pequenas coisas que se podem tornar num universo. Ficamos irritadas ou nas nuvens com um simples gesto. Somos mais ligadas aopormenor. Se os homens conhecerem com queme stão e estiverem para lhes satisfazer os caprichos pode ser uma relação perfeita, se é que isso existe.
Comomulher , os meus problemas nada têm a ver com não compreender os homens. Esses entendimentos são fáceis.O problema é compreender-me, sou eu.
Comigo é que as guerras se travam,mas claro que estravazam para o dominio das relações como acontece com qualquer mulher.
Confuso? eu ando, sou-o, desde que me conheço.
pérola, obrigado... estou confuso, sim, mas obrigado. :)
Esta Ela ainda me pareceu mais complicada do que a que vem depois, mas li primeiro :) Talvez ela já não goste do Ele e por isso é que tem tantas regras e reage tão mal, ou Ela ache que é Ele não gosta dela e por isso reage assim...seja como for não parece de todo uma relação lá muito feliz...
redonda, é uma questão eternamente complexa. :)
Mas há homens que são assim como essa ela ou julgas que não?
Eu hem? sou mulher e jamais aturaria um homem desses e se fosse homem essa já tinha ido de patins.
Picuinhices todos temos mas impôr ao outro...já é outra história.
e a minha resposta à tua última pergunta é: claro que sim...só pode!
Gostei e é mais uma lição de vida, parabéns!
fatyly, não penso que não, não. :)
Não sei até que ponto quero conhecer uma mulher e tão depressa que nunca mais ela me consiga surpreender...
josh gottam, a idade é uma vantagem em tantas coisas. :)
Complexo, mas eternamente fascinante...
Amei!
daniela, obrigado. :)
mi, obrigado. :)
O que me faz rir quando o meu namorado está em casa:
- quando o açúcar aparece arrumado no sitio dos tachos
- quando chego a casa na hora de almoço e vou abrir a persiana janela do quarto porque quando se levantou deixou fechada
- quando a toalha do banho está enrolada molhada
- quando no outro dia de manhã reparo que está a dormir em cima do lençol porque quando me deitei esqueci-me de "abrir a cama"
Quando não está, sinto falta destas pequenas coisas. Sinto a falta de rir :)
Laura
laura, ainda bem que ris... :)
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