coisas que fascinam (152)
Naqueles dias...
A Cristina, às vezes, não se reconhece ao espelho, diz ela. Olha para o seu próprio reflexo como se estivesse a ver outra pessoa qualquer. Distancia-se de si mesma e percebe que a sua existência começou exactamente por aí, pelo seu corpo. Não pela alma. Tudo o que ela é, para além do corpo, deve-se à existência deste. Depois pensa na morte, sem perceber se o que sente é tristeza ou felicidade, e telefona-me.
Tenho uma música só para ela no meu telemóvel. This Must Be The Place, dos Talking Heads. Por isso é que, mesmo estando no banho, já sabia que era ela a ligar-me hoje de manhã. Fechei a torneira e corri para atender. O meu corpo deixou pegadas de água nos azulejos da casa de banho e no flutuante do corredor, para as quais fiquei a olhar enquanto a cumprimentava entusiasmado.
- Estás em Aveiro? - Perguntou.
- Sim.
- Queres almoçar comigo?
- Sim.
A Cristina costuma ilustrar as suas palavras com gestos enérgicos, como se o verbo não chegasse para se fazer compreender. Diz-me que a filha dela está cada vez mais bonita, e passa a mão esquerda pela frente da própria face. Depois diz que está naqueles dias, e a mesma mão cai inerte na toalha de papel da mesa do restaurante. Eu ainda não disse nada e já sei o que vem a seguir. Ela desenha um círculo enorme à volta da barriga e diz que se sente assim desde que engravidou. Só às vezes. Sorri.
Aqueles dias são esses mesmos, aqueles em que ela pensa na morte apesar de ser nova, porque é mãe, e telefona-me para conversar. Não é um pensamento obsessivo ou compulsivo, nem sequer uma depressão. É um lento descortinar da vida tal como ela é. Engana a morte assim, a falar comigo e a fazer gestos intercalados com garfadas numa salada de polvo.
- Está boa, a salada... - diz ela enquanto eu aceno afirmativamente.
Durante o silêncio que se segue, ambos sentimos o sabor da comida com mais intensidade. No meu caso, o da cerveja de pressão cuja espuma parece querer viver e o do azeite com alho por cima dos tentáculos tenros. A vida, a nossa vida, tem sido isso mesmo. O gesto das palavras e o sabor da comida. Dou-me conta de quem sou para ela, de quem sempre fui. Sou aquele que engana a morte, e digo-lho como se estivesse a chegar a uma conclusão fenomenal qualquer.
Ela ri-se. Sou mesmo.
A Cristina, às vezes, não se reconhece ao espelho, diz ela. Olha para o seu próprio reflexo como se estivesse a ver outra pessoa qualquer. Distancia-se de si mesma e percebe que a sua existência começou exactamente por aí, pelo seu corpo. Não pela alma. Tudo o que ela é, para além do corpo, deve-se à existência deste. Depois pensa na morte, sem perceber se o que sente é tristeza ou felicidade, e telefona-me.
Tenho uma música só para ela no meu telemóvel. This Must Be The Place, dos Talking Heads. Por isso é que, mesmo estando no banho, já sabia que era ela a ligar-me hoje de manhã. Fechei a torneira e corri para atender. O meu corpo deixou pegadas de água nos azulejos da casa de banho e no flutuante do corredor, para as quais fiquei a olhar enquanto a cumprimentava entusiasmado.
- Estás em Aveiro? - Perguntou.
- Sim.
- Queres almoçar comigo?
- Sim.
A Cristina costuma ilustrar as suas palavras com gestos enérgicos, como se o verbo não chegasse para se fazer compreender. Diz-me que a filha dela está cada vez mais bonita, e passa a mão esquerda pela frente da própria face. Depois diz que está naqueles dias, e a mesma mão cai inerte na toalha de papel da mesa do restaurante. Eu ainda não disse nada e já sei o que vem a seguir. Ela desenha um círculo enorme à volta da barriga e diz que se sente assim desde que engravidou. Só às vezes. Sorri.
Aqueles dias são esses mesmos, aqueles em que ela pensa na morte apesar de ser nova, porque é mãe, e telefona-me para conversar. Não é um pensamento obsessivo ou compulsivo, nem sequer uma depressão. É um lento descortinar da vida tal como ela é. Engana a morte assim, a falar comigo e a fazer gestos intercalados com garfadas numa salada de polvo.
- Está boa, a salada... - diz ela enquanto eu aceno afirmativamente.
Durante o silêncio que se segue, ambos sentimos o sabor da comida com mais intensidade. No meu caso, o da cerveja de pressão cuja espuma parece querer viver e o do azeite com alho por cima dos tentáculos tenros. A vida, a nossa vida, tem sido isso mesmo. O gesto das palavras e o sabor da comida. Dou-me conta de quem sou para ela, de quem sempre fui. Sou aquele que engana a morte, e digo-lho como se estivesse a chegar a uma conclusão fenomenal qualquer.
Ela ri-se. Sou mesmo.
7 comentários:
Tão bom enganar a morte amparada...
:)
malena, nem sei se é o que nos resta, se é tudo o que queremos. :)
Eu cá ficava com a salada de polvo. Parabéns pelo blog, divirto-me imenso a ler as conversas (principalmente) e tudo o resto, porque me revejo muitas vezes em alguns dos pensamentos.
vitela, obrigado. :)
Os amigos e alguns familiares, são para isso mesmo...e quem te engana a ti... a morte? Temos sempre alguém e quem não tem...faz esse exercício mental ocupando-se de forma a não pensar nela. Fiz-me entender?
e gostei...desculpa:)
fatyly, obrigado. fazes-te sempre entender muito bem. :)
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