2.29.2012

respostas a perguntas inexistentes (197)

uma pedra

Faz cinco anos andava eu a dar pontapés na minha solidão, desses que se dão a tentar enxotar qualquer coisa. Uma pedra da rua, o cadáver duma bola de criança ou uma mola de pendurar a roupa que caiu duma varanda. A solidão, como esses objectos inertes, nunca se afasta o suficiente. Apenas alguns metros. À medida que continuamos a caminhar tornamos a encontrá-los e a pontapeá-los de novo. Sempre para o mais longe possível, que é sempre demasiado perto. É assim a solidão. É assim uma pedra da rua.
Nunca consegui pedir desculpa à Elsa pelo pontapé que lhe dei. Às vezes ainda a imagino caída numa berma qualquer do passeio, à espera doutro solitário à deriva que passe por ali aos pontapés às coisas. E às pessoas. Estávamos num restaurante a beber cerveja importada e ela era bonita. Era também o único ombro de mulher que eu tinha acessível naquela noite. Pousei-lhe a minha cabeça, e depois o corpo. Brandamente, acho eu. O corpo vai sempre atrás de uma de duas coisas: a cabeça ou o coração. Se eu lhe pedisse desculpa agora, dizia-lhe que lamento nunca a ter Amado, mas a sério que tentei. Não consegui.
Despedi-me dela com um "até qualquer dia", que é mesmíssima coisa que dizer "até nunca". Um homem não se despede assim de quem Ama. "Até qualquer dia" é só mais um pontapé certeiro em alguém, até um dia em que talvez surja de novo. Se não surgir, paciência.Um homem que Ama quer sempre levar o número de telefone, uma data em concreto, um olhar certeiro com um beijo daqueles que se prolongam um pouco para além da despedida. Eu não levei nada. Sorri-lhe e virei costas. Até qualquer dia.
Por mais que tente, não consigo perceber porque é que nunca me apaixonei por ela. As mulheres às vezes têm essa capacidade estranha de me afastar. São tão boas que se tornam automaticamente inacessíveis. Como se estivessem num pedestal, ligado a um alarme contra solitários, e se fossem quebrar ao primeiro toque. Dão medo. É isso. Dão medo. Depois penso para mim mesmo que são demasiado frias e afogo a distância num lanche quente duma pastelaria de bairro. Um galão e uma mista, por favor.
Faz cinco anos andava eu a ser pontapeado. Pela Elsa também. Acho que fui o único homem disponível naquela noite e ela lá fez o favor de aceitar. O ombro dela recebeu-me, depois o corpo também. Quando se levantou pegou nas peças de roupa espalhas pelo chão, uma a uma, sempre disfarçando a sua nudez com a pequena toalha de hotel que trouxera para a cama, e foi-se vestir para a casa de banho. Nenhuma mulher apaixonada se vai vestir para a casa de banho. Deixei-me estar. Depois despedi-me com um "até qualquer dia" e ela virou costas sem me beijar. Tenho a certeza que não olhou para trás. Eu também não.
Há bocado fui ver o mar. Às vezes faço isso: vou ver o mar e cumprimento-o da mesma forma que cumprimento o guarda-nocturno do prédio onde vivo. Estão sempre ali no mesmo sítio, ele e o mar, à espera que eu passe por lá. Digo "boa noite" a um e "bom dia" a outro. Bom dia, disse-lhe. Pontapeei uma pedra que foi engolida por uma onda. Talvez seja isso. Talvez o Amor nos vá dando pontapés até simplesmente deixar de o fazer. De um dia para o outro. Assim, sem mais nem menos. Uma pedra.

17 comentários:

Pérola disse...

O Amor não é racional, e isto deixa-nos desconfortáveis. Não depende dos nossos apetites, desejos, vontades, gostos. É expontâneo e não pede licença para entrar. Por isso, o nosso coração deve estar limpo, recetivo, sem expectativas, para o acolher quando ele se manifesta, de mansinho, sem nos apercebermos. E, isto é muito bom!

Ivar C disse...

pérola, obrigado. :)

Anónimo disse...

Coitados dos teus pés...
:)

Lilith disse...

Adorei o texto... Revi-me nele.
É estranho como algumas pessoas têm tudo para que as amemos e mesmo assim não somos capazes...

Mário disse...

Excelente texto. Gostei.

Ivar C disse...

cycle, lol. :)
~
lilith, obrigado. :)

vsmário, obrigado. :)

Fatyly disse...

Isso faz parte da vida e do nosso crescimento como seres humanos. Nota 20!

Ivar C disse...

fatyly, obrigado. :)

Sofi disse...

Excelente analogia e Adorei o texto
É uma pena que haja pessoas que estão tão "disponiveis" para serem amadas e no entanto não as conseguimos amar, por muito que tentemos.
Suponho que o amor é assim mesmo. Nasce sem pedir licença, aparece quando menos o esperamos.
Mas quando aconteçe não há sentimento mais maravilhoso ao cimo da terra!!! Tenho muita pena das pessoas que nunca amaram. A verdade é essa!
Kiss

Ivar C disse...

vadia, obrigado. :)

Ana C. Martins disse...

Fantástico texto. como coisas simples me deixam a pensar. quantas vezes nos cruzamos com pessoas que parecem ter tudo de perfeição mas há ali algo que nos afasta delas. talvez por isso,a perfeição não existir e não acreditarmos nela. contudo quando o amor vem, vem silenciosamente e consegue transformar tudo. achei curioso ao dizeres que visitas o mar, eu faço isso, e falo com ele.. e às vezes até parece que me ouve.

:) gosto mesmo de ler as tuas palavras e ficar a pensar!

Ivar C disse...

ana, obrigado. :)

Sisi disse...

Gostei imenso do texto esta fantástico mas na minha opinião o amor funciona um pouco diferente. Existem sempre aquelas pessoas que seriam perfeitas para nos amarmos mas no entanto não conseguimos ama las porque? pq o ser humano é insatisfeito por natureza, ele quer sempre aquilo que na sua opinião é difícil ou inacessível . Gosto imenso de ver casais de velhotes a passear na ruas desta pequena cidade alentejana , faz me imensa inveja porque sei que agora já não existem amores assim. Agora as pessoas apaixonam se loucamente , e lutam desalmadamente para ter na sua posse o "dono do seu coração", e quando conseguem , é como se ganham -se um prémio de uma corrida , passado um tempo arrumam numa gaveta e buscam outra corrida que seja difícil e ainda não tenham ganho . As pessoas , tratam-se como pequenos objectos , o que importa é apenas o sentimento de posse...ainda mantenho uma réstia de esperança , que existam aquele amor que arde mas que nos faz pessoas melhores e amamos com tanta intensidade que passamos a fazer as coisas também pelo bem estar dos outros e não so pelo nosso...

Não falo muitas vezes em amor, na realidade com apenas 21 anos ja percebi que isso é uma recompensa e não um objectivo , foco-me em algo menos doloroso na racionalidade .

Mas la no fundo sempre permanece aquele sonho que um dia o meu príncipe me venha buscar no seu cavalo branco , um príncipe com um coração de ouro que prefira o verbo "ser" ao verbo "ter" ...

beijos sory :)

Ivar C disse...

sory, acho que o que descreves tem também a ver com a faixa etária, o Amor é uma coisa que se aprende. :)

Camomila disse...

é bom saber que alguém consegue pôr em palavras aquilo que o meu coração por vezes não sossega. continuas a fazê-lo impecávelmente.

mais por favor. sem a parte dos pontapés (para ambos) :)

Sisi disse...

talvez...talvez daqui a uns anos venha a pensar de outra maneira... mas pelo que observo , as pessoas vivem muito em desequilíbrio por amor, umas vivem para o amor e são escravas dele , outras desistem dele e fazem dele um acordo de interesses... sinceramente começo a achar que crescer é sinonimo não apenas de mudar mas tb de amargar...

Ivar C disse...

foxy ni, obrigado. :)

sory, virás a pensar doutra forma. :)