...da deterioração do Amor
Tenho um amigo que é obcecado por números. Quando digo que ele é obcecado por números, digo-o sem qualquer tipo de reserva. Tudo aquilo que ele sente, vê, ouve ou diz tem que estar relacionado com uma lógica numérica qualquer. Por exemplo, sempre que anda de autocarro anota num caderninho a matrícula do mesmo e o número do lugar em que se senta. De vez em quando faz as contas e passa a saber exactamente quantas vezes andou em cada veículo e em que lugar. Diz ele que o faz para ter uma noção mais real do que está a ser esta sua passagem pela vida.
Por princípio, poderia ser considerado um amigo nerd e insuportável, mas não é. É alguém que eu adoro visitar de vez em quando para ter daquelas conversas, sempre regadas com algum uísque, que se estendem pela noite dentro. Também gosto de o receber, e se me conseguir esquecer que ele sabe exactamente quantos degraus precisa de subir para chegar a minha casa, conseguimos ter conversas normais.
Noutro dia fui eu visitá-lo, e depois dele me dizer quantas vezes em média eu limpo os sapatos no tapete da entrada, sentámo-nos e ele serviu-me o primeiro de seis copos de uísque Bushmills (segundo ele, é essa a média de uísques que bebemos por cada noite destas). A partir daí, ficámos na conversa até às cinco da manhã e, suponho eu, ultrapassámos em muito a média do álcool ingerido. Todas as nossas conversas são, pelo menos a meu ver, interessantes precisamente por isso. Eu falo das coisas numa perspectiva sempre mais solta, ele sempre preso à sua lógica sequencial ou estatística.
A ele, durante estes mais de dez anos em que nos tornámos amigos, só lhe conheci uma namorada. Ele gostava tanto dela que passou a comprar cadernos de capa dura para registar tudo o que considerava importante, penso eu que para que esses registos durassem mais. Um dia a namorada nunca mais apareceu e ele nunca me explicou porquê. Abanava os ombros cada vez que eu lhe perguntava e rapidamente mudava de assunto.
Dei o primeiro gole e ele perguntou-me porque é que eu estava triste. Abanei os ombros e disse-lhe que a minha namorada me tinha dito que precisava de algum tempo para pensar na nossa relação e que, acabada de chegar de férias, nem sequer ainda me tinha vindo ver. Disse-lhe que o mais horrível de tudo era esta urgência que eu tinha de estar com ela e que ela, nitidamente, não tinha de estar comigo. Olhei-o de frente e ele sorriu, como se me percebesse e finalmente, com esse olhar, me estivesse a explicar o que lhe tinha acontecido a ele.
Vi-o levantar-se e voltar com um desse caderninhos de capa dura dos tempos em que tinha namorada. Na capa, com uma esferográfica azul, tinha escrito "...da deterioração do Amor". Abriu-o com muita calma e explicou-me que entre o princípio e o fim da sua relação, o número de beijos que a namorada lhe dava por sua iniciativa desceu de vinte e dois por dia para apenas três, o número de vezes que ela lhe dava a mão na rua desceu de cem por cento para apenas dois por cento. Olhou-me nos olhos para tentar perceber a minha reacção, mas eu ouvia-o impávido e sereno, sem esboçar fosse o que fosse. Por fim, disse ele, o número de vezes que tinham sexo desceu de seis vezes por semana para uma vez de duas em duas semanas.
Bebi tudo o que restava no meu copo de uísque e eu próprio me servi de outro, sem o servir a ele porque ainda tinha o copo cheio. Perguntei-lhe se tinha sido ele a acabar com ele ou se tinha sido ela, só para ver se ele, finalmente, abria um pouco o véu que cobria o fim da sua relação. Abanou os ombros e respondeu-me que, desde então, abana os ombros cerca de três vezes por dia, ou seja, sempre que alguém lhe fala de Amor.
Por princípio, poderia ser considerado um amigo nerd e insuportável, mas não é. É alguém que eu adoro visitar de vez em quando para ter daquelas conversas, sempre regadas com algum uísque, que se estendem pela noite dentro. Também gosto de o receber, e se me conseguir esquecer que ele sabe exactamente quantos degraus precisa de subir para chegar a minha casa, conseguimos ter conversas normais.
Noutro dia fui eu visitá-lo, e depois dele me dizer quantas vezes em média eu limpo os sapatos no tapete da entrada, sentámo-nos e ele serviu-me o primeiro de seis copos de uísque Bushmills (segundo ele, é essa a média de uísques que bebemos por cada noite destas). A partir daí, ficámos na conversa até às cinco da manhã e, suponho eu, ultrapassámos em muito a média do álcool ingerido. Todas as nossas conversas são, pelo menos a meu ver, interessantes precisamente por isso. Eu falo das coisas numa perspectiva sempre mais solta, ele sempre preso à sua lógica sequencial ou estatística.
A ele, durante estes mais de dez anos em que nos tornámos amigos, só lhe conheci uma namorada. Ele gostava tanto dela que passou a comprar cadernos de capa dura para registar tudo o que considerava importante, penso eu que para que esses registos durassem mais. Um dia a namorada nunca mais apareceu e ele nunca me explicou porquê. Abanava os ombros cada vez que eu lhe perguntava e rapidamente mudava de assunto.
Dei o primeiro gole e ele perguntou-me porque é que eu estava triste. Abanei os ombros e disse-lhe que a minha namorada me tinha dito que precisava de algum tempo para pensar na nossa relação e que, acabada de chegar de férias, nem sequer ainda me tinha vindo ver. Disse-lhe que o mais horrível de tudo era esta urgência que eu tinha de estar com ela e que ela, nitidamente, não tinha de estar comigo. Olhei-o de frente e ele sorriu, como se me percebesse e finalmente, com esse olhar, me estivesse a explicar o que lhe tinha acontecido a ele.
Vi-o levantar-se e voltar com um desse caderninhos de capa dura dos tempos em que tinha namorada. Na capa, com uma esferográfica azul, tinha escrito "...da deterioração do Amor". Abriu-o com muita calma e explicou-me que entre o princípio e o fim da sua relação, o número de beijos que a namorada lhe dava por sua iniciativa desceu de vinte e dois por dia para apenas três, o número de vezes que ela lhe dava a mão na rua desceu de cem por cento para apenas dois por cento. Olhou-me nos olhos para tentar perceber a minha reacção, mas eu ouvia-o impávido e sereno, sem esboçar fosse o que fosse. Por fim, disse ele, o número de vezes que tinham sexo desceu de seis vezes por semana para uma vez de duas em duas semanas.
Bebi tudo o que restava no meu copo de uísque e eu próprio me servi de outro, sem o servir a ele porque ainda tinha o copo cheio. Perguntei-lhe se tinha sido ele a acabar com ele ou se tinha sido ela, só para ver se ele, finalmente, abria um pouco o véu que cobria o fim da sua relação. Abanou os ombros e respondeu-me que, desde então, abana os ombros cerca de três vezes por dia, ou seja, sempre que alguém lhe fala de Amor.
48 comentários:
Gosto tanto de passar aqui de vez em quando!! Adorei a história, nunca liguei muita importância aos números mas sempre liguei à quantidade de beijos, abraços e carinhos, e quando esta começa a ser perigosamente escassa é preocupante... Até porque "quando a gente gosta é claro que a gente cuida..."
♥
happy brunette, olha... gosto tanto dessa música. :)
muito bom este texto, como muitos outros! Espero que ele venha a sentir-se feliz apesar de tanto número na cabeça!! e que cada encolher de ombros se transforme num sorriso cada vez que lhe falarem de amor... e que a percentagem de sorrisos aumente consideravelmente!
O amor tem muito que ver com os numeros. so que é tedioso contar como vai acabar.
O teu amigo é delicioso
2w
sorriso, isto é uma crónica. ele, de facto, não existe. o que nem sequer sei se é bom ou mau. :)
comohacerelamor, mas não sabemos. :)
gostei tanto... abanar os ombros perante o amor é tudo o que podemos fazer, estejamos de bem ou de mal com ele :)
2w, :)
Eu também adoro esta música ;) e muitas outras do Sr. Veloso... Já não se fazem cantores como os de antigamente hahaha
lias, acaba por ser assim, acaba. :)
happy brunette, embora não seja verdade, eu estou de acordo contigo, o que é uma coisa estranha. acho que do caetano tenho tudo, sim. :)
Gostei bastante deste texto.
manuel, obrigado. :)
Muito bom! Adorei :)
raquel, obrigado. :)
Deve ser por isso que tenho uma relação difícil com números! :)
malena, também é por isso que temos que facilitá-la. :)
Gosto da parte da conversa até ás 5 da manhã, com o tal "amigo". Talvez porque também eu gosto de ter conversas até às tantas se possível com amigos, daqueles respiram e nos respondem de volta.
Confesso que não gosto de obsessões, confundem-me.
A parte da namorada e do tempo pedido, calculo que também só faça parte da crónica:)
Sempre que aqui passo fico bem disposta :) <3
Obrigado!
Seria uma honra que visitásse o meu cantinho.
http://ritualday.blogspot.pt/
maria madeira, tudo faz parte da crónica, e as crónicas são sempre uma forma de dizer o que queremos sem dizer o que queremos. :)
sm, obrigado. :)
Talvez um dia o teu amigo consiga deduzir a fórmula do Amor. =)
achei absolutamente extraordinário o texto e em particular esse teu amigo ,p
beijinho*
almond girl, boa ideia. :)
af, obrigado. beijinho. :)
Gostei do texto!
Muito bom! uma procura por encontrar uma lógica e controlo em qualquer coisa tão irracional quanto o Amor.
Gostei muito.
Essas associações numerológicas hã-de me assombrar ao longo dos próximos dias.
Eu fico ansiosa a espera do proximo texto... Este, não sei se pela espera que pareceu enorme ou se pela característica do seu amigo, foi algo que se estivesse escrito na contracapa de um livro, eu o compraria!
estadista de algibeira, obrigado. :)
sushi, obrigado. :)
naiane, obrigado. :)
Deduzi que esse amigo não existisse! Mas gostei dele :P
O texto é genial.
vans, deduziste bem. obrigado. :)
leio todos os teus posts com grande carinho, mas este foi qualquer coisa. acho que chorei um bocadinho.
são os números que às vezes representam coisas simples ;)
c, até te podia dizer que não vale a pena chorar, mas às vezes até vale. Por isso... obrigado. :)
Esta história deu-me arrepios... O teu amigo parece-me um génio...
Gosto de conversar até as 5 com aqueles que fazem parte de nos a muitos anos. Gosto de anotar pontos que mais tarde podem vir a fazer falta. Dispenso a bebida e os cigarros. Gosto das historias longas de embalar. Não existe uma formula para amar. Existe sim, tempo para amar.
Excelente texto.
passo aqui quase todos os dias em pezinhos de lã. hoje isso é impossível. o teu amigo imaginário obrigou-me a quebrar a minha estatística silenciosa para te dizer obrigada. quantas vezes os teus textos me fazem gargalhar (ou apenas ser surpreendida) à frente do PC! nada mau :). obrigada.
Olá
Passo regularmente e nunca comentei.
Apenas para dizer que gosto muito das tuas cronicas, da tua forma de olhar o mundo, tão parecida com a de muitos de nós que por aqui passamos.
Já li desde post's antigos e de quando te intitulavas " o divorciado", percebi a evolução de uma vida, que também procuro.
Gosto da subtileza deste cantinho! Obrigada :)
joy, os amigos, só pelo facto de o serem, são uns génios. :)
manuel luis, obrigado. :)
saladeira, obrigado. pela simpatia e pela presença. :)
anónimo, eu é que agradeço a presença. agradeço e preciso dela. :)
Gostei. Admiro a paciencia obsessiva do teu amigo. Às vezes os numeros e as estatisticas podem ajudar-nos a compreender algumas coisas.
Gostei, da parte de ficarem até às cinco da matina a conversar.
EJSantos
ejsantos, obrigado. :)
Excelente cadência narrativa .../
Verdadeiro ou não, acredito que tudo tem sempre algo de real. O que descreves pode ser uma jóia de rapaz, não incapacitante, mas vive com o que lhe faz "ocupar a mente"...
"Portadores de manias patológicas escondem na maioria das vezes, angústias, ansiedades, frustrações, vazios vivênciais, (experiências da vida) falta de motivações mais amplas etc."
e encontram em algumas obsessões um escape.
Quem não tem alguma como contar degraus, ler as matrículas do carros e somar os números, etc, etc. porque de "parvos e loucos" todos temos um pouco.
Por vezes ao querermos saber "demais" sobre a vida de alguém... dá "um belo encolher de ombros".
Gostei!
Uma bela "estória", carregada de humanidade e dos tiques e obsessões que nos caracterizam.
jota ene, obrigado. :)
fatyly, obrigado. :)
fernando lopes, obrigado. :)
Não sei se será só "estória"... mas tem mais de verdade do que muitas outras "verdades" que já li...
Brutal a lógica do teu amigo! E tão, tão real... Dá que pensar.
Obrigado.
josh gottam, obrigado. :)
Não agradeças. Eu (e os outros) é que temos de agradecer. Nunca tinha olhado para as relações desta forma... Erradamente! Muito bem observado. Obrigado, eu e nós! :P
Adorei o texto! Muito bom.Obrigado
josh gottam, mas há sempre várias formas... :)
silvino machado, eu é que agradeço. :)
Há muitos anos que não passava por aqui....e gostei de rever-te.
Simplesmente extraordinario, o amor visto atraves de numeros/estatistica.
Há um fundo de verdade imensa nesse teu amigo!
LabX
labx, obrigado. :)
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