1.18.2012

por gestos

Quando conheci a Sónia não consegui estabelecer contacto com ela a não ser através do olhar. Ela nasceu assim, sem ouvir e sem poder aprender a falar. Observei-a discretamente durante o resto da noite, a cortar o seu próprio e imenso silêncio com gestos mais ou menos bruscos, como se tivesse uma faca nas mãos e tentasse abrir caminho numa selva densa. Comunicava apenas com as poucas pessoas presentes que sabiam linguagem gestual, três ou quatro, e de vez em quando o irmão dela apresentava-a aos que iam chegando à festa da mesma forma que a tinha apresentado a mim. É surda e muda, dizia.
A festa devia-se, pelo menos pelo convite que me tinha sido feito, ao seu divórcio. O seu casamento tinha sido uma união violenta de quase quatro anos, e portanto o seu fim significava verdadeiramente um princípio. Era esse princípio que se festejava, embora ainda não se soubesse muito bem do quê. Talvez, pelo menos, duma vida melhor.
O irmão queria que esse princípio fosse rodeado por muitas e diversas pessoas, e por isso até a mim me pediu para participar. Eu, que era apenas um seu conhecido colega de trabalho com quem nunca trocara mais do que um "bom dia" ou "boa tarde". Às vezes podemos gostar muito de alguém com quem nunca falamos, disse ele justificando o convite inesperado.
E foi assim que me apaixonei por ela. Sem palavras e sem sons. Apenas um olhar tão profundo como um poço e um gesto tão universal como o de levar a minha mão ao peito dela. Corei. Toquei-lhe. Afastei-me e passei o resto da noite a segui-la disfarçadamente com os meus olhos nervosos.
Propositadamente fui ficando para o fim, e enquanto a porta daquele pequeno apartamento ia pingando para o exterior os convidados, eu ia ganhando espaço para o que o nosso olhar se pudesse tocar de novo, tal como a minha mão tocara no seu peito. Era o meu objectivo da noite, para depois poder adormecer aninhado nesse sentimento.
Há muitos anos que eu não dormia tão bem, que é como quem diz, tão perto dum Amor tão longínquo. No dia seguinte passei as horas do trabalho a pensar no que podia dizer ao irmão para me conseguir aproximar dela. À saída da fábrica cruzei-me calculadamente com ele e anunciei-lhe que, por coincidência, tinha começado a frequentar aulas de linguagem gestual. Era mentira, mas uma mentira inofensiva se eu começasse mesmo a fazê-lo num dos dias seguintes. Aliás, uma mentira que funcionou, porque ele convidou-me para ir lá a casa treinar com a irmã. Se eu quisesse, claro. Sorri-lhe.
Nessa mesma noite investiguei todas as possibilidades que havia na cidade para aprender a nova linguagem da minha vida. Fiz uma lista que percorri com o meu dedo indicador ao som do meu ritmo cardíaco, acabando por escolher um curso duma associação qualquer sem fins lucrativos. Inscrevi-me por email e compareci à primeira aula nessa mesma noite.
Primeiro bati à porta e ninguém abriu. Depois carreguei num interruptor e percebi, através dum vidro fosco, que uma luz vermelha se acendia lá dentro. Ouvi passos e senti a maçaneta rodar. Era ela, a Sónia, a professora. A mesma que me tinha ensinado que me podia apaixonar por gestos e na enormidade dum silêncio. Trocámos um olhar, ela pegou na minha mão e levou-a ao seu peito. Toquei-lhe, corei, entrei.

29 comentários:

Conto de Fadas disse...

Que bonito, fogo... é mesmo assim, na diferença (que é igual) às vezes encontramos o que nos completa. Eu também já tive uma relação com uma pessoa "diferente", durou o tempo que durou e pronto, mas fez-me crescer e ver com outros olhos as diferenças que não são diferentes, são iguais mas de outro modo.

Ivar C disse...

conto de fadas, obrigado. :)

Brisa disse...

Nunca calhou ter alguém "diferente" na minha vida, mas não será preciso isso para entender o quanto se consegue conversar com alguém através do silêncio e do olhar. Há pessoas de quem gosto mesmo muito e com as quais não consigo sequer trocar uma palavra. Mesmo assim, faz-me tão bem.

ladybug disse...

Até me arrepiei...

Ana disse...

Que amor :)

Sintonia disse...

Gosto mesmo do que escreves, pah!! xD
E eu sempre pensei que se devia ensinar na escola linguagem gestual ... mas (shame on me) nunca fui tirar um curso ... acho que todos deviamos saber, mas eu não me mexi ...
Mas enfim, esta bonito!!

Ivar C disse...

brisa, é mesmo disso que eu queria falar aqui... :)

ladybug, :)

ana, :)

sintonia, obrigado. também acho que devia ser obrigatório nas escolas... :)

Leonor disse...

Muito bonito.
No teu melhor ...
Um prazer ler-te.
bj

Ivar C disse...

leonor, obrigado. :)

Fatyly disse...

Na escola das minhas netas aprendem a linguagem gestual e a mais velha tem na sua turma dois colegas surdos que já se acompanham há 4 anos.
Um deles já fez implantes e agora são os colegas que ensinam o som, ou seja fazem a frase gestual ao mesmo tempo que falam.
É bonito de se ver, mas há uma coisa que sempre me fez muita confusão: porque dizer de alguém que nasce com essa deficiência é "surdo e logo a seguir é mudo", porque um surdo é sempre mudo, mas um mudo pode não ser surdo.

Eu vi um filme de um amor lindíssimo com uma actriz que é surda de nascença, e que até ganhou um Óscar, lembras-te do nome?

Adorei e todos deveriam aprender a lidar com o lado belo de todos que têm deficiência, porque o têm de facto como os ditos normais!

Ivar C disse...

fatyly, para ser sincero não estou a ver o filme... mas gostei de saber que há escolas em que se aprende linguagem gestual. A minha filha aprendeu... :)

Estudante disse...

Que lindo :)

Ivar C disse...

estudante, obrigado. :)

Anónimo disse...

Ah minino,
que trem mais lindo sô!
Depois te mando um dicionario de Mineirês( jeito de falar aqui de Minas Gerais).
Bjs.

Olga disse...

Que bela maneira de começar o dia. Obrigada :)

Anónimo disse...

Bagaço, dedico-me à educação de surdos há quatro anos e quero fazer duas correcções: é língua gestual e surdos. Os surdos não são mudos, apenas não verbalizam porque não ouvem e, por isso, são incapazes de reproduzir os sons. A língua gestual é uma língua estruturada, com gramática e sintaxe, não é "apenas" linguagem por gestos. Gostei muito do texto, mas senti-me na obrigação de fazer estas observações, não leves a mal :)
Ana Sofia

Candybabe disse...

Que lindo!
:D

Ivar C disse...

fátima, manda, até tenho uma amiga mineira aqui em Portugal. Pode dar jeito. Obrigado. :)

olga, eu é que agradeço. :)

ana sofia, lol! obrigado. eu sei que os surdos não são mudos, mas também não pretendia fazer um texto técnico... :)

candybabe, obrigado. :)

Maria Nunes disse...

lindo!!
obrigada por mais este texto maravilhoso.

Ivar C disse...

maria nunes, eu é que agradeço. a simpatia e a presença. :)

AF disse...

bela história de amor :)

Ivar C disse...

af, obrigado. :)

Lily disse...

Palavras para quê? ;)

Ivar C disse...

lily, :)

Unknown disse...

lindo!...

Ivar C disse...

bee, :)

MissLilly disse...

Que texto excelente, os meus parabens! Por vezes as palavras so atrapalham :)

Ivar C disse...

liliana costa, obrigado. :)

Anónimo disse...

linda esta história

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