1.03.2012

batatas fritas

Costumava ver-me ao espelho antes de pensar em matar-me. E digo costumava porque o fazia todos os dias, ver-me ao espelho e pensar em matar-me. Também desistia todos os dias da segunda acção. Acho que o fazia porque era confortável não me matar sabendo que o podia fazer. Acabar, duma vez por todas, com aquilo que via ao espelho.
É que não havia muito mais para além disso, uma mulher que nunca se tinha achado bonita, nunca tinha Amado ninguém nem sequer tinha vontade o fazer. Pior, não sei se algum homem alguma vez na vida tinha tido vontade de me Amar a mim. Um dia troquei tudo por cigarros uns atrás dos outros, que é como quem diz, troquei uma morte rápida por uma lenta mas com algum prazer.
A minha mãe costuma dizer-me que eu nunca devia ter deixado o Bruno. Que ele era bom partido e até já tinha casa paga. E eu lembro-me sempre dele sair da minha cama com o pénis ainda erecto e sujo de esperma, a correr para a sala para tentar ver o final dum jogo de futebol qualquer. Não conseguiu e voltou frustrado. Para a próxima temos que ser mais rápidos, disse. Eu calei-me e fumei um cigarro, destes que ainda fumo agora, com uma vontade enorme que ele saísse dali.
Depois desse dia aprendi que a solidão e a fome são irmãs chegadas, que ambas precisam de ser saciadas rapidamente. O problema é que, numa e noutra, quando se come depressa demais há o risco duma mulher se engasgar. Engasguei-me com ele da mesma forma que já me engasguei com batatas fritas. Sei que todos os homens que vieram a seguir ao Bruno me pareceram iguais. Alguns bons à vista mas todos sem sabor. Nunca comi nenhum.
À minha mãe comecei a inventar casos amorosos, só para ela ficar descansada. Fui criando homens que se mostravam interessados por mim mas que, por um acaso qualquer da vida, acabavam por se afastar. Depois comecei a inventá-los também para mim, principalmente nas noites em que não conseguia dormir. Acreditei em todos, pelo menos até hoje. Cruzei-me com o Bruno numa avenida qualquer da cidade e ele abraçou-me. Os abraços são como as batatas fritas. Saciam. Já me tinha esquecido disso.
Vejo-me ao espelho agora sem pensar em mais nada. Sabe-me bem não querer matar aquilo que está do outro lado, mesmo que não consiga responder ao meu sorriso forçado. Ele perguntou-me se eu estava bem e respondi que sim. Trocámos os novos números de telemóvel e prometeu que me telefonava hoje. Estou à espera. Dum abraço.

14 comentários:

Conto de Fadas disse...

:-/ Não entendi isto.

Ivar C disse...

ana sá, nem eu. :)

AnAndrade disse...

E sai mais uma vénia!
Fabuloso... :)

Ivar C disse...

AnAndrade, obrigado. :)

Anónimo disse...

Uooou, isto significa que afinal é Bi?
Não que isso me incomode, mas pensava que apenas os heterosexuais não conseguiam compreender as mulheres. :)
Abraço, ou beijo sei lá...

Carmo disse...

Incrivelmente narrado o vazio de uma mulher mal amada. Tão bonito.

:)

Poison disse...

o gajo que saísse do meu lado, depois de uma relação sexual, para ir ver o fim do jogo de futebol era tratado como as batatas fritas... Fritava-lhe o dito cujo!!!

memyselfandi disse...

"Os abraços são como as batatas fritas. Saciam." Concordo! Gosto muito de abraços =)

Lily disse...

So deeper...

Ivar C disse...

anónimo, lol lol lol. :)

carmos, obrigado. :)

poison, lol. que medo. :)

memyselfandi, obrigado. :)

lily, obrigado. :)

Fatyly disse...

Isto tem muito que se lhe diga e toca num ponto que pode não parecer nada aos olhos de qualquer um mas que como mãe que sou e por saber que muitas mães são assim, jamais em tempo algum deveriam fazer ou pressionar uma filha(o) a pontos de uma escalada vertiginosa e sofredora e por vezes fatal a pontos de: "À minha mãe comecei a inventar casos amorosos, só para ela ficar descansada."

e termino dizendo que subscrevo as palavras de Carmo.

Parabéns por mais esta narrativa que daria pano para mangas.

Ivar C disse...

fatyly, concordo. obrigado. :)

C. disse...

a escrita está cada vez melhor. as histórias também.

parabéns. é mesmo isto

Ivar C disse...

c. obrigado. :)