respostas a perguntas inexistentes (182)
um bocadinho
Ela dizia que gostava do meu café, aquele que eu fazia numa cafeteira velha herdada da minha avó. Sentava-se na mesa da cozinha com um cigarro na mão, ansioso por ser fumado, à espera que eu lhe enchesse a caneca estalada. Depois bebia-o em goles tão pequenos que me parecia impossível que um dia chegasse ao fim. Mas chegava sempre. E como eu sabia que o meu café era igual a qualquer outro, acreditava que o que ela queria dizer era que gostava um bocadinho de mim.Quando não estamos apaixonados por outra pessoa mas gostamos um bocadinho dela, dizer que gostamos do café que ela faz é uma maneira de lhe agradecermos a existência. Assim, sem assumir uma responsabilidade demasiado grande pelo que se diz. E eu respondia-lhe sempre que o café era bom, não por minha causa mas por causa da cafeteira da minha avó. Depois ela ia fumar para a varanda e eu ficava dentro de casa, encolhido pela evidência de ter conhecido mais uma mulher que gostava um bocadinho de mim e de quem, na verdade, eu também só gostava um bocadinho.
Depois duma separação nunca se gosta muito de alguém. Gosta-se um bocadinho, aqui e ali, num processo terapêutico lento para que um dia se consiga Amar outra vez. Foi essa a importância da Márcia, que também se tinha divorciado pouco tempo antes e também estava de férias quando a conheci. Eu estava parado na margem duma estrada qualquer a encher-me do silêncio dum rio e ela veio do nada pedir-me água para lavar as mãos. Colocou-as em concha e eu verti generosamente da que estava a beber. Esfregou-as uma na outra com vivacidade e depois sentou-se ao meu lado. Ficámos ali algumas horas a cuspir palavras sobre nós, como se quiséssemos dizer quem éramos sem contar o que nos tinha acontecido.
Gostei dela nesse dia e nos dias que se seguiram. Um bocadinho só, mas gostei. Por isso é que lhe fiz café.
11 comentários:
Depois de uma derrocada...são esses "bocadinhos" que nos aparecem de mil formas, que devem ser absorvidos...lentamente...numa de assentar a poeira!
Não há relação nenhuma que vingue...sobretudo aquelas tipo vingança ou mostruário de que...enquanto nos encontramos debaixo dos escombros emocionais.
E como descreves tão bem algo da máxima importância. Parabéns já está gasto...dir-te-ei...nunca desistas destas tuas psicanálises:)
fatyly, obrigado. :)
Mas são consoladores para ambos, esses bocadinhos! :)
malena, então não são? :)
é um dos caminhos que se pode percorrer nesa fase. mas sempre ilusório, para quem quer esquecer o que não deve ser esquecido, porque o tempo encarrega-se de fazer renascer o amor, e não precisa da nossa mãozinha...
anónimo, a nossa mãozinha está lá, precise ou não... :)
depois de uma separação temos sempre que voltar a aprender a amar, como se fossem os primeiros passos... e gostar-se um "bocadinho" de alguém é como alguém que volta a dar pequenos passos até conseguir caminhar com firmeza novamente...
Adorei o texto... Extraordinário!!!
Esse bocadinho que se gosta é o máximo que se pode dar depois da "tempestade". São memorias boas que ficam....tipo sol que nos aquece em tarde de Outuno
poison, concordo. obrigado. :)
porque um dia me perdi..., obrigado. :)
É bem verdade, depois duma separação é dificil voltar a amar. Comigo aconteceu e já lá vão 4 anos. `As vezes dou por mim a pensar como resolver este problema, é que nunca mais consegui achar graça fosse a quem fosse... mas é que nem para um cafezinho!
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carmo, o cafezinho é um bocadinho. para mim foi muitas vezes. :)
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