10.10.2011

coisas que fascinam (134)

o Chico das Bicicletas

Quando eu era criança só existiam duas oficinas de bicicletas em Aveiro. Uma era a do Zé Gordo das Bicicletas, outra era a do Chico das Bicicletas. Eu ia sempre à do Chico das Bicicletas, por ser mais perto da minha casa, e aquilo nunca me pareceu um verdadeiro negócio. Ele alinhava-me a direcção, enchia os pneus e afinava os travões sempre de graça. Para mim, na minha ingenuidade de criança, era normal ele fazer isso sem cobrar, até porque com sete ou oito anos eu nunca tinha dinheiro no bolso.
O Chico das Bicicletas já tinha morrido quando em adulto pensei nele como uma pessoa boa, uma pessoa daquelas que arranja bicicletas a uma criança e recebe em pagamento apenas o seu sorriso. Tenho pena de nunca lhe ter agradecido ter-me proporcionado uma infância um bocadinho melhor, e se ele hoje fosse vivo era o que eu fazia. Dava-lhe um abraço do tamanho do mundo e dizia-lhe obrigado.
Nessa altura andava de bicicleta por motivo nenhum, e esse é o melhor dos motivos para andar de bicicleta. Agora faço-o para manter o peso e alguma resistência, mas quando era pequeno dizia à minha mãe que ia lá para fora andar de bicicleta e pronto, ia sem motivo aparente. Lembro-me que às vezes, muitas vezes mesmo, fingia que era uma mota e fazia vrruuuummmm vrruuuuuummmmm com a boca enquanto pedalava. Acreditar nas nossas próprias mentiras é uma capacidade que só temos enquanto somos crianças. Depois, quando crescemos, perdemo-la, principalmente com os primeiros desgostos de Amor. Aliás, acho que foi por isso que muito cedo a minha bicicleta passou a ser apenas isso mesmo, uma bicicleta.
Os desgostos de Amor têm a mania de transformar o mundo nele mesmo, tal como ele é, ou seja, de o transformar totalmente. São um serial killer dos nossos sonhos. Lembro-me, por exemplo, de em fases deficitárias de paixão deixar de atravessar as passadeiras como se fossem um jogo, colocando os pés apenas nos riscos brancos para não perder. Atravessar a estrada passava a ser apenas isso mesmo: atravessar a estrada. É o que faz a falta de paixão, mostra-nos o mundo como ele é, e eu não gosto de simplesmente atravessar a estrada.
O sinal vermelho deve ter demorado cerca de um minuto a passar para vermelho. Foi esse o tempo que eu estive a olhar para outra mulher à minha frente, que depois atravessou a rua no sentido oposto ao meu. Aconteceu-me hoje e ela sorriu-me quase por impulso, tal como eu. Depois não olhei para trás e ela quase de certeza que também não. Era apenas alguém que sabe transformar as coisas que são naquilo que devem ser. Há pessoas assim, o Chico das Bicicletas era uma delas.
Quase ninguém sabe porque é que Ama alguém, mas eu acho que é essencialmente por isso. Porque esse alguém nos permite viver noutro mundo que não este. Constantemente. É por isso que eu Amo a Raquel, e é por isso também que esta é a minha homenagem a esse homem que fez parte da minha infância.

8 comentários:

*** disse...

Apeteceu-me oferecer-te uma campainha de bicicleta, daquelas antigas, pesadas, de metal, sabes? Por isso faz de conta que ta ofereço.;)

Fatyly disse...

Valorizar o que deve ser valorizado é um aprendizado que se adquire ao longo da vida.

O Chico das bicicletas marcou a tua meninice de tal forma que ainda hoje te lembras dele e desse mundo, não de "mentira" mas irei mais pelo "sonho e imaginação". Ao amares a Raquel não acredito que por vezes ambos não tenham "atitudes de criança" porque quando se ama e se é amado a sintonia é tal - onde não há idades - como o andar das ou nas rodas de uma biciclete, onde se enche os pulmões de ar e toda a zona envolvente tem luz, brilho, sonho e que de vez em quando precisam de um "ajuste". Todos podemos ser "chico das bicicletas"...começando por nós para podermos dar aos outros.
Como sempre...gostei imenso!

AP disse...

ainda no sabado atravessei a estrada só a calcar o branco, e como se isso nao bastasse (e ainda bem k era tarde p ng ter visto a "triste" figura e do meu namorado) viemos até casa só a pisar o branco do passeio! e sabe tão bem viver noutro mundo que não este ;)

Ivar C disse...

lm, está recebida. :)

fatyly, podemos sim, todos ser um chico das bicicletas. obrigado. :)

ap, é um princípio fundamental da vida. :)

Carmo disse...

Sabes cada vez sorrimos menos uns para os outros, naturalmente.

Eu gosto de sorrir, mas por vezes não tenho o mm feedback, mas não me incomoda. Um sorriso alheio faz o dia de muita gente.

Assim como um elogio sincero.

:)

Ivar C disse...

carmo, pois faz. o que um sorriso alheio t~em de melhor é mesmo isso: ser alheio. :)

redonda disse...

Gostei muito deste texto e acho que o Chico das Bicicletas devia saber como era importante o que fazia :)
beijinho
Gábi

memyselfandi disse...

"Quase ninguém sabe porque é que Ama alguém, mas eu acho que é essencialmente por isso. Porque esse alguém nos permite viver noutro mundo que não este. Constantemente.". BRU-TAL! Assim. Em duas palavras =)