2.22.2007

amigos

Já fui a entrevistas para todo o tipo de trabalhos imaginários. Acho que é normalmente quando se procura emprego que se fica mais triste, é quando se percebe que há pessoas que não estão definitivamente na nossa linha de pensamento. Aconteceu-me isso na semana passada, a propósito duma entrevista para um emprego nos supermercados LIDL, emprego que até não desejava assim tanto (felizmente não estou desempregado de momento) e a cuja entrevista acabei por nem ir.
Telefonaram-me numa quinta-feira ao fim da tarde para estar na sexta seguinte em Famalicão para a entrevista. Eu perguntei porque é que não me tinham telefonado antes, que ir de Aveiro a Famalicão num dia de semana pode não ser assim muito simples. Do outro lado respondeu-me uma voz fria: - “É uma entrevista de trabalho para chefe de secção. Quer, quer. Não quer, não quer. Sobre tudo o mais terá que conseguir falar directamente com o director”. Estava na estação de Espinho nesta altura, entre inúmeras pessoas com o olhar acentuado pelo cansaço do dia, à espera dum comboio que as levasse ao conforto de casa. Fechei os olhos e respondi: - “Olha, eu não quero trabalhar no LIDL”, e desliguei.
Na viagem de 36 minutos até Aveiro vim a pensar como até sou uma pessoa com sorte. A falta de emprego encarnou duma forma fria a lei da oferta e da procura, e as pessoas acham que podem dizer tudo o que lhes apetece às outras, mesmo que nem as conheçam. Trabalhar não é só um dever, é também um direito, e temo que a nossa sociedade se tenha esquecido disso. Até sou uma pessoa com sorte. Vou conhecendo e fazendo amigos que escapam a esta lógica mercantilista da vida, com quem consigo falar um pouco de tudo sem ter que me sentir analiticamente observado ou a minha privacidade invadida. Com os meus amigos posso falar do Beira-Mar, dos problemas do meu objecto cardíaco, da mulher que eu mais gosto no mundo, dos chocolates Toblerone, dos filmes que já vi e dos livros que já li, da minha cor preferida para as paredes da casa de banho. Sempre com um sorriso nos lábios. São os meus amigos.
No último fim de semana senti que algumas coisas não andam pelo melhor com alguns deles, principalmente pelos mesmos motivos que me fazem a mim sentir o homem mais feliz do mundo ou também o mais infeliz. Quando andamos com o nosso objecto cardíaco cheio de questões por resolver, não anda mais nada bem. É normal. É assim comigo e, naturalmente, também é assim com eles. Os problemas de emprego, burocracias, dinheiro ou outra merda qualquer não interessam nada comparados com o facto de, por exemplo, sentirmos carência emocional. Por isso é que que queria mandar um abraço a todos e todas os que vão rodeando os meus dias. Acho que tenho sorte por os conhecer, por estar sempre a organizar jantares, noites de copos e idas ao cinema. Tenho sorte, pronto. Só lhes queria dizer que desejo mesmo que a vida lhes corra bem. Neste momento eles sabem quem são...
Quanto ao resto, já fui operário numa fábrica de cerâmica em Aveiro, já fui cobrador, já montei cinemas em vários países do mundo, já estive desempregado, já fiz filmes e publiquei um livro, já escrevi para jornais, já joguei andebol, já pratiquei karaté, já chorei e muito por causa de mulheres, já fiz arroz doce, já comprei uma t-shirt do Calvin, já fiz uma aposta sobre futebol com um grupo de prostitutas checas, já fiz karaoke na em Hong-Kong duma música chinesa, já adormeci ao relento em Barcelona, já tomei banho à noite no Algarve, já vi um filho nascer, já vi amigos morrer, já andei seiscentos quilómetros para poder ver uma pessoa durante vinte minutos. É assim: a vida renova-se todos os dias, para todas as pessoas do mundo. Tenho pena que nem toda a gente consiga perceber isto. Neste momento só sei que não vou trabalhar para o LIDL. Não quero.

Talvez este texto não esteja muito bem escrito, mas estou doente e não me apetece revê-lo, está bem? Fiquem todos bem!

10 comentários:

Fausta Paixão disse...

nada como estar doente para que a tendência introspectiva ganhe esta dimensão toda.
ou estar desempregado, que aí não é só a introspecção mas também tudo o que vem por acréscimo e ainda mais a tirania de quem tem a faca e o queijo na mão, ainda que seja muitas vezes uma faquita de bazar chinês e um queijo rançoso...
digo isto porque acompanho neste momento o desespero de um familiar com uma família a cargo que já passou por isso que aqui contas e outras coisas ainda piores. mas isto sou eu que digo com o recibo do vencimento na mão desde há umas horas.

e sabes, há dias em que temos toda a sorte do mundo e dias em que, com a mesma oferta, somos os mais desgraçados.

podes mudar isso?

de qualquer forma, não são os males dos outros que nos põem com melhor cara!

este texto nãp está mal escrito. eu gostei muito de o ler.
beijo aconchegado para diminuir a febre (paradoxo? não!)

Van de Kamp disse...

Meu Deus...
Até que enfim achei um blog com vários textos bacanas... Desculpe mas sou novo nisso e pretendo copiar descaradamente o seu modelo. Já sou seu fã!!!

Cláudia disse...

Eu tenho uma lista interminável de histórias de maus tratos por parte de empresas que acham que nos fazem um favor a chamarem-nos para uma entrevista...

Incluindo uma viagens q tive que fazer de Espinho a Lisboa para chegar lá e me dizerem que me chamaram para a entrevista por engano...
Infelizmente, anda tudo tão desesperado por trabalho que os empregadores abusam...

Triste. E é este o motivo porque sei que em breve terei que imigrar de novo.
As melhoras.

DIV de divertida disse...

Parabéns por seres como és!
Gostei imenso de te ler!
Felicidades!! e as melhoras!

Lia disse...

Espero que agora estejas um pouquinho melhor pelo menos.

Entrevistas de emprego... ui...
Já fui a algumas e já entrevistei centenas de candidatos... nem comento...

O objecto cardíaco... esse raramente anda em forma, mas há sempre um novo dia.

Gostei do teu post, e acima de tudo do sentimento de amizade que se sente.

Beijinhos

P.S. E que tal é o arroz doce?

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

beijo. ligo-te no fds. estás com a xxxxxxxxxx?

Anónimo disse...

Numa reportagem televisiva sobre pós-graduados desempregados, abordaram o problema de excesso de abilitações na procura de emprego e deram o exemplo de pessoas que são chamadas a entrevistas de empregos mais modestos e lhes disseram: "Só a(o) chamámos à entrevista para perceber quão baixo uma pessoa pode descer".
O que é que eles mereciam?!?

As melhoras para esse estado febril. Isso com um bagaço vai ao sítio :-)

Que a vida corra bem a todos desse lado...

Fábula disse...

o que disseste em relação a (des)emprego foi uma seta atirada ao meu calcanhar... :P

Ivar C disse...

fausta, obrigado. não se pode mudar isso... :)

van de kamp, obrigado.

cláudia, se eu não fosse pai já tinha emigrado. Para Cabo Verde ou assim... :)

Div, obrigado. Esse sofá vermelho parece apetitoso...

lia, beijinho. o meu arroz doce é o melhor do mundo, passe a presunção, claro. :)

mrf, este fim de semana trabalho... mas depois disso devo sair... segunda ponho música no melhor bar de aveiro... :)

duckman, pois... a mim, na última entrevista a que fui, ofereceram-me 440 euros para trabalhar seis dias por semana, nove horas por dia... obrigado.

fábula, espero que não sejas como Aquiles... beijinho. ;)

deKruella disse...

O texto está muito bom...não etá como aqueles que tens escrito como crónicas, com sentidos mais elaborados mas está, sem grandes emaranhadas(que eu aprecio), simples e muito bom de ler.
O que está escrito...transcende praticamente tudo o que escreveste até agora...falaste num livro publicado? podes dar mais indicações? Gostava de ler o teu trabalho...