devíamos ter tido sexo!
Lembro-me dela a ver as letras de romances intermináveis. Não sabia ler, mas virava as páginas uma a uma como se percebesse o sentido de cada página, de cada frase, de cada palavra. Talvez percebesse mesmo, porque no silêncio deve existir um sentido qualquer.
Uma vez levantei a voz para simular o roncar do motor de um pequeno carro de rali que os meus pais me tinham oferecido no Natal e ela pediu-me silêncio. Encostou o dedo indicador aos lábios e depois apontou para o livro aberto nas próprias pernas.
- Chiu...
Nunca conheci o pai da Susana. Na verdade, creio que nunca existiu. Talvez tenha morrido quando ela era ainda bebé, talvez tenha emigrado. Não sei. Sei que um dia perguntei-lhe por ele e ela limitou-se a abanar os ombros.
- Não está cá!
Restava a mãe, a senhora que lia livros sem saber ler, enquanto nós fazíamos corridas com miniaturas de automóveis numa sala alcatifada a vermelho. A Susana não tinha bonecas nem cozinhas de brincar, mas tinha um grande balde de blocos de construção e outro com muitos carrinhos. Eram brinquedos tipicamente masculinos, o que ainda me fazia estranhar mais a ausência de um pai, mas talvez tenha sido por isso que ficámos tão amigos. Pelos brinquedos e pela ausência do pai.
- A tua mãe assustava-me um bocado!
E a Susana sorriu. Muitos anos depois reconheci-a, primeiro pelos gestos, depois pela fisionomia. Estava a ler um romance qualquer na mesma posição da mãe, que fechou para me abraçar deixando o dedo indicador a marcar a página.
Bebemos alguma cerveja juntos, onde as nossas memórias de infância flutuaram vindas bem do fundo. Depois percorremos a cidade de mãos dadas, na expectativa de afogar essas recordações e de ver nascer um presente ou um futuro em nós, o que não aconteceu. O abraço com que nos despedimos foi um pouco menos intenso do que aquele com que nos reencontráramos nessa mesma tarde. A nossa amizade morria assim, tão devagar quanto possível, entre duas cidades e dois abraços diferentes.
- A tua mãe assustava-me um bocado!
E a Susana sorriu. Muitos anos depois reconheci-a, primeiro pelos gestos, depois pela fisionomia. Estava a ler um romance qualquer na mesma posição da mãe, que fechou para me abraçar deixando o dedo indicador a marcar a página.
Bebemos alguma cerveja juntos, onde as nossas memórias de infância flutuaram vindas bem do fundo. Depois percorremos a cidade de mãos dadas, na expectativa de afogar essas recordações e de ver nascer um presente ou um futuro em nós, o que não aconteceu. O abraço com que nos despedimos foi um pouco menos intenso do que aquele com que nos reencontráramos nessa mesma tarde. A nossa amizade morria assim, tão devagar quanto possível, entre duas cidades e dois abraços diferentes.
Esta semana, vinte anos depois desse segundo encontro, tomámos um café entre essas duas cidades. Ela apareceu com um livro que podia ser o mesmo da segunda vez e o mesmo que a mãe lia quando éramos crianças. Contei-lhe a nossa própria história, mais ou menos como contei até ao parágrafo anterior.
- Devíamos ter tido sexo!
Sorriu.
- Devíamos ter tido sexo!
Sorriu.
4 comentários:
Olha... e eu também sorri.
Gostei.
Maria Varredora Pau de Vassoura, obrigado. :)
Tenho uma história parecida, mas nós tivemos sexo. E foi pior...
Gostei muito do texto
anónimo, obrigado. :)
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