6.26.2012

tão sozinha e tão contigo

As cidades despovoadas fazem-se sempre confusão. Fico a olhar para os prédios silenciosos e não percebo onde é que se meteram as pessoas. Não parece que estejam nas suas casas, nas ruas também não estão. São três da tarde e aponto para o que parece ser um café aberto ao fundo da rua. Talvez ali possa beber uma cerveja fresca e comer qualquer coisa, enfim, recuperar as forças. A Sofia quer sorrir, mas já não consegue. Dou-lhe uma pequena e indelével palmada no ombro, como se assim a pudesse ajudar a andar. Não posso.
Dez minutos depois penetro numa imensa sombra ameaçada pelo calor exterior. Sinto o pescoço a arder por causa do Sol e ouço apenas algumas moscas esvoaçantes. De vez em quando há uma que é electrocutada numa lâmpada roxa. Não há ninguém a atender e eu não tenho forças para chamar. Sinto-me cansado e o suor que lacrimeja por todo o meu corpo faz-me sentir desconfortável. Sento-me numa mesa com a sensação de que acabei de escalar o Everest. A Sofia ficou à porta, depois de deixar cair o saco que trazia aos ombros, como se estivesse à espera da morte.
Decidimos percorrer Trás-Os-Montes à boleia na noite em que nos conhecemos. Não tens coragem, disse ela. Pode ser já para a semana, respondi eu. E assim foi. Agora estamos os dois aqui, perdidos numa cidade  na qual começava a ter dúvidas que existisse vida, não fosse uma mulher com um rosto esculpido pelos anos surgir duma porta aberta que parece abrigar a escuridão. Peço uma caneca de cerveja e um pacote de cones com sabor a queijo, ela pede um sumo natural de laranja lançando-me simultaneamente um olhar de censura. Não sei por que motivo pedi os cones com sabor a queijo, digo. De repente apeteceu-me, explico-lhe. Ela ri-se. É a primeira vez que se ri em muitas horas. O saco dela continua abandonado na porta.
Ganha cor enquanto bebe o sumo. Ganha vida. Fico a pensar na noite em que a conheci e como a achei logo tão bonita quanto acho agora. Estava aflita para ir à casa de banho num bar e a das mulheres estava ocupada, por isso pediu-me para ficar à porta da dos homens e que não deixasse ninguém entrar. Os homens partem sempre as fechaduras das casas de banho, disse ela quando saiu. Depois convidou-me para um copo.
Gosto de álcool como gosto de música. Emociono-me com ambos, não sei porquê. Foi o que eu lhe disse quando pedi um uísque duplo e ela um cocktail qualquer. Falámos sobre lugares, viagens e sonhos, acabando na promessa sofrida que faríamos esta viagem à boleia. No fim abraçámo-nos algum tempo e senti-a chorar para dentro. Disse-me que os abraços a fazem sentir-se só, embora os adore e precise deles para viver. Os abraços dela são os meus uísques, pensei.
Não gosto nada de ter dúvidas sobre o Amor, mas neste momento tenho. Não sei se a Amo ou não. Sei que só a tenho a ela e que nesta cidade esse sentimento é ainda mais intenso.Não preciso explicar-lhe nada do que sinto. Por qualquer motivo sei que ela sabe de tudo. Faço silêncio e acabo a cerveja. Procuro a senhora para pedir outra mas ela já não está. Provavelmente foi engolida pela porta da escuridão. Como os últimos cones de queijo e lambo os dedos. São bons.
O que é que estás a sentir? Pergunta. E eu nem sei. As cidades despovoadas fazem-me sempre confusão.  Fico a olhar para os prédios silenciosos e não percebo onde é que se meteram as pessoas. É como se todos   me tivessem abandonado e partido para um lugar incerto. Ao mesmo tempo ser abandonado e tê-la ali ao meu lado sabe-me bem. Os dois sozinhos no mundo, mais uma mulher que aparece e desaparece engolida pela noite, apenas para nos servir cerveja, sumos e cones com sabor a queijo. Sinto-me só, concluo.
É assim que eu me sinto quando me abraças, diz ela. Tão sozinha e tão contigo.

14 comentários:

A Mais Picante disse...

Não gosto de bagaço, aliás nem de aguardente velha, mas a verdade é que gosto do que escreve, é desagradável essa situação de uma pessoa se sentir só estando acompanhada, o melhor será escolher outra companhia ou, na sua falta um bom livro.

redonda disse...

Gostei muito deste texto.
um beijinho
Gábi

Unknown disse...

a solidão é uma coisa por dentro, da natureza das feridas. dói mais quando se lhe toca.

(excelente post, como tantos)

Onoma-topeia disse...

Não me diga que toma o pequeno almoço na pastelaria Caracas que eu desmancho-me já com a coincidência...

Ivar C disse...

pipoca mais picante, obrigado. :)

redonda, obrigado. beijinho. :)

menino de sua mãe, obrigado. é esse o ângulo, sim. :)

onoma-topeia, já lá fui muitas vezes, mas agora já não vou há mais de um ano, creio. :)

Pedaços disse...

"É assim que eu me sinto quando me abraças, diz ela. Tão sozinha e tão contigo."
Com a sua licença, mas vou roubar a frase ;)

Ivar C disse...

margarida, obrigado. :)

Anónimo disse...

Gostei muito do texto...

Ivar C disse...

a vida da cinderela de saltos altos, obrigado. :)

Ondas disse...

Revejo-me... beijos

Ivar C disse...

sm, obrigado pela presença. beijos. :)

Eli disse...

Excelente a forma como me (nos?) transportas. Ser leitora do que escreves é um privilégio. Sabes que tens esse talento, não sabes?! Agora, fiquei-me assim na ignorância...

Ivar C disse...

eli, sei que tenho leitores. isso chega-me. :)

Fatyly disse...

essa solidão sentida...é tramada conforme já o disse em outros textos...e consegues tocar nessa "chaga" sempre de forma diferente.

És de facto um grande escritor e não sei a razão irracional dos imbecis que nos governam por não aproveitarem e editarem "novos valores" como tu, por exemplo nos manuais escolares e não só... em vez de malharem sempre nos pré-históricos!
Adorei e parabéns!