3.15.2016

algumas gaivotas estavam em terra

Sempre que me lembro dela, lembro-me também da sua mão direita, engelhada e trémula a esforçar-se por levar um cigarro à boca. Quando a conheci, foi o que me marcou. Quando me despedi dela também. Disso e, claro, de tudo o que ela me ensinou sem sequer se aperceber. E enquanto ela fumou o primeiro cigarro nessa tarde, em silêncio total, dei-me conta de que o vento soprava nas nuvens com mais intensidade do que o habitual.
O vento traz sempre essa mensagem consigo, a de que o tempo está a passar mesmo quando não estamos a fazer nada que nos pareça importante. Se o mundo está quieto, o tempo também está. Se o mundo se mexe, como as nuvens neste caso, o tempo conta. 
Quando tirei os olhos do céu, ela sorriu-me como se estivesse a ler-me o pensamento. Sufocou a beata na areia e depois guardou-a num guardanapo que colocou dentro da carteira, para não a deixar ali a poluir a praia. E foi nesse momento que me senti um felizardo por, nessa tarde, uma mulher com mais trinta anos do que eu me ter perguntado se se podia sentar ao meu lado numa praia deserta.

- Está triste?

Eu não sabia como estava, por isso demorei alguns segundos a responder. Tinha-a visto passear junto às ondas e a molhar os pés calçados sem sequer tentar evitá-lo. Lembrando-me disso, fiscalizei-lhe as sapatilhas de pano. Estavam húmidas e cheias de areia. 

- Estou desconfortável, é só isso...

O que me soube bem naquela mulher foi ela não ter respostas fugitivas. Não me disse que eu era demasiado novo para isso, não me mandou para um sítio mais confortável nem me perguntou porquê. Nem sequer me tentou explicar nada sobre a vida. Limitou-se a aceitar o que eu lhe dissera, sem me chatear com questões mais pequeninas do que aquele momento.
Algumas gaivotas estavam em terra.

- Há uma altura em que nos conformamos com a solidão... - Acabou por segredar ao vento que ainda contava o tempo.
- Que altura é essa? - Perguntei.
- Não sei. Sei apenas que me lembro do momento em que percebi que nunca mais na vida ia Amar um homem.

Uma das gaivotas levantou voo e passou bem perto das nossas cabeças. Tive a sensação estúpida de que a nossa conversa a tinha incomodado, como se estivesse a perturbar o andamento natural das coisas. Quis perguntar se esse momento tinha sido triste, mas faltou-me a coragem. Por isso acabei apenas por consentir a frase.

- Hum, hum...
- Foi um momento de libertação, apesar de tudo.

O frio veio ouvir a nossa conversa e ela pediu-me que a ajudasse a levantar. Tive medo de lhe quebrar algum osso, por isso a operação demorou mais do que seria de esperar. Depois convidou-me para jantar na casa dela, ali a poucos metros da praia, onde eu acabei por passar dois ou três dias.
Hoje estava a ler a notícia sobre a morte de um actor que tinha aproximadamente a mesma idade dela e revivi estes dias. Da minha janela via as nuvens a correr no céu. O tempo passa, mas não apaga as nossas memórias.  Nem sequer essa, da mão dela trémula a tentar levar um cigarro à boca.

2 comentários:

pequeno caso serio disse...

(...)"O tempo passa, mas não apaga as nossas memórias. "(...)

Tão verdade! Para a memória,que tão bem sabemos ser uma faculdade muito pouco obediente,às vezes basta um cheiro,uma imagem ,um sabor e záz! lá vem ela ...a sacana da saudade...outra vez! E essa, a saudade,nem o tempo ajuda a acalmar...

Ivar C disse...

pequeno caso serio, pois... vem quando não queremos, às vezes. :)