1.11.2013

respostas a perguntas inexistentes (242)

molas

Uma vez conheci uma mulher que fazia colecção de molas de roupa. O mais estranho é que, à época, ela nem sequer lavava ou secava a própria roupa. Levava-a a casa dos pais, pelo menos pelo que me disse no dia em que a conheci. Nesse dia bebemos uns copos e ela acabou por me convidar para ir a casa dela, onde me mostrou a sua colecção de molas de roupa com a mesma emoção que se mostra um álbum de fotografias a um amigo novo.
Passo a explicar. A colecção de molas de roupa tinha uma característica que me suscitou algum interesse, pois por trás de cada uma delas havia um rosto humano. Na verdade, a Fátima nunca tinha comprado nenhuma mola de roupa na vida. Coleccionava aquelas que apanhava no chão, caídas duma varanda ou duma janela qualquer. Fazia isso há anos e cada vez que encontrava uma mola tentava adivinhar de onde ela tinha caído. Depois visitava o mesmo sítio repetidamente até conseguir tirar uma fotografia ao antigo dono da mola enquanto estendia ou apanhava a roupa, imprimia-a e pendurava-a numa das cordas de roupa que tinha espalhadas pelas paredes da casa. Com a mola respectiva, claro.
Tinhas as paredes da sala e de um corredor repletas de fotografias com pessoas a estender ou a apanhar a roupa. Fotografias tiradas em pequenas varandas de cidades, pátios soalheiros de casas de aldeia, grandes terraços, etc. Percorri cada uma delas com interesse genuíno e fui parando naquelas que, por algum motivo, careciam de uma análise mais pormenorizada.

- Disseste-me que fazias colecção de molas... - disse-lhe eu.
- Sim.
- Mas isto é uma colecção de histórias. - concluí.

Ela concordou. Disse-me que eram as suas próprias histórias. Através daquela colecção conseguia lembrar-se de cada um dos momentos e das viagens da sua vida. Numa das fotografias, por exemplo, uma miúda loira com doze ou treze anos dizia adeus à máquina. Tinha sido, pelos vistos, uma criança que deixou cair uma mola duma varanda no Algarve e a quem o então namorado da Fátima a pediu encarecidamente para a sua colecção. O namorado da Fátima já tinha deixado de o ser muitos anos antes e, muito provavelmente, a miúda já andaria na Universidade por aqueles dias.
Cada mola pendurava um momento do passado dessa minha nova amiga como se fosse uma peça de roupa a secar ao Sol. A diferença é que ela nunca os apanhava e, por isso, estavam ali a perpetuar-se nos dias que passam com uma estranha insistência. Eram pequenos momentos que pareciam teimar em viver mais tempo do que aquele que a natureza lhes atribuíra por direito.
A Fátima acabou por me explicar que a memória cerebral não chega para que esses pequenos momentos vivam dentro de nós. Acabam por desaparecer, como grãos de areia engolidos por uma onda do mar. Eu concordei na altura, mas hoje de manhã lembrei-me desta história apenas porque estava a estender a roupa aos fracos raios deste Sol invernoso que tenta aquecer a cidade de Aveiro. Lembrei-me dela de repente, sem qualquer outra justificação para além de estar a estender a roupa. Talvez a nossa memória cerebral não seja assim tão má. Pelo menos aquela que está, duma forma ou de outra, ligada ao coração.

13 comentários:

Andorinha disse...

Que história tão gira. Eu tenho fotos das minhas viagens nas paredes do corredor, mas pra me obrigar a escolher as importantes só posso escolher 3 por viagem. O resultado é que tenho fotos de...momentos. O momento em que o mimo que vi em NY apanhou um escaldão, o momento de pure bliss em que atravessei de Staten Island pra Manhattan (há que ver o sorriso de paz que tenho na cara, o momento em que a minha Petzi perdeu uma unha do pé no metro de Paris e aparece com a pata enfaixada ao meu colo em frente à Torre Eifell. Momentos que explico a quem vem cá casa e se pendura nas fotos a querer saber mais. Tenho que escolher mais fotos das últimas viagens!

nos"entas!!!! ( e feliz) disse...

»a memória cerebral não chega para que esses pequenos momentos vivam dentro de nós. Acabam por desaparecer, como grãos de areia engolidos por uma onda do mar.»
Adorei esta frase...e é tão verdade...mas...essa historia das fotos nas molas da roupa é um pouco macabro... NÂO?? ;)
Quem me dera, poder pôr molas de roupa presas no meu coração com os momentos mágicos que já deixei de lhes sentir..o cheiro.....
bjos

mary disse...

Gostei de ler até ao fim. Ao inicio parecia-me um cenário das Mentes Criminosas mas acabaste por conduzir o texto para um significado muito bonito :)

Pérola disse...

Até os objectos mais insignificantes podem ser preciosos se assim os valorizarmos.

História terna, esta!

Ivar C disse...

andorinha, percebeste bem... eu, por acaso, já tive a casa assim, cheia de fotos por todo o lado. actualmente não... :)

quase nos "entas", é mesmo por aí, sim... as recordações perdem a emoção... :)

mary, obrigado. :)

pérola, podem ultrapassar-se a si mesmos. :)

Junto à Janela disse...

Gosto imenso das pessoas que têm coragem para interferir na vida de desconhecidos com aparentes insignificâncias e somente no ouvi-las fazerem toda a diferença.

Adorei a história e as histórias :)

Ivar C disse...

junto à janela, obrigado. :)

Olga disse...

História curiosa e bonita. Eu trago uma pedra de todos os sítios onde vou mas a coleção da tua amiga é sem dúvida muito mais original. :)

Ivar C disse...

olga, também faço isso às vezes. :)

Fatyly disse...

Como é óbvio, com o passar do tempo "esses pequenos momentos acabam por desaparecer" porque deixam de ter significado dentro de nós...ou não por gostarem demais "dessa originalidade", porque a meu ver não está relacionado com a "memória cerebral" que sim, poderemos ir perdendo com a idade sobretudo se formos afectados com algo mais grave.

Tal como os coleccionadores de isto e mais aquilo...e já conheci quem se fartou e ...borda fora:)

Se me pedissem para tirar uma foto com uma mola ou por causa de uma mola...não sei se aceitaria!

Ivar C disse...

fatyly, às vezes nem é preciso pedir. tira-se e pronto. :)

Anónimo disse...

Relacionarmos certos momentos da nossa vida com certos objectos é uma forma de manter bem vivos esses momentos, que de outra forma seriam esquecidos.

Ivar C disse...

A Vida da Cinderela de Saltos Altos, é um método, sim. :)