meia hora de vida
A primeira coisa em que pensei foi em recusar o convite. Afinal de contas, embora gostasse muito da Vienna, a impressão que eu tinha é que ela era dum meio social muito diferente do meu. Vestia-se com muito cuidado e tinha um comportamento, vá lá... bastante fino para aquilo que eram os meus padrões. Na verdade, só ficámos a falar um com o outro porque eu achei piada ao facto de conhecer uma Vienna no primeiro dia em que estive na capital da Áustria.
Eu andava de mochila às costas há algumas semanas pela Europa e, para ser sincero, com um aspecto já bastante sujo e descuidado. Numa rua qualquer ela veio falar comigo e avisou-me que não devia continuar naquela direcção por causa dum grupo de extrema direita que estava uns metros à frente. Não gostavam muito de estrangeiros e podiam tornar-se agressivos. No princípio fiquei um bocado assustado e perguntei-lhe por onde é que devia seguir, pois nem sequer fazia a mínima ideia onde estava, e ela acabou por me convidar para beber uma cerveja num sítio seguro.
- I'm Vienna! - Disse ela.
- Are you Vienna or do you live in Vienna? - perguntei.
- No, no... my name is Vienna. - sorri.
E foi assim que começou a nossa conversa. Ela era loira, tão loira e tão bem vestida quanto uma actriz de cinema consegue ser. Bastante bonita e energética. Não demorou muito a perceber que eu estava praticamente sem dinheiro e que andava a pé porque um bilhete de metro custava, já naquele ano de mil novecentos e noventa e cinco, o equivalente a seiscentos escudos. Uma brutalidade, portanto. Disse-lhe que ia apanhar um comboio às seis da manhã para Praga e, por isso, nem sequer ia dormir em lado nenhum, o que era verdade. Pagou-me duas cervejas que custaram também um balúrdio e convidou-me para uma festa na casa dela nessa mesma noite.Assim, poderia sair da festa e ir directamente para a estação de comboios.
Aceitei um papelinho com uma morada escrita à mão, pensando que nunca na vida a iria procurar, e por isso despedi-me dela com um "see you!" acreditando que, na verdade, nunca mais a veria. À noite, no entanto, e porque a solidão começou a pesar, acabei por ir dar à casa dela depois de ter conseguido comprar uma garrafa de vinho português num supermercado. Assim que entrei, perguntei por ela, pois foi um desconhecido que abriu a porta e eu não sabia mais o que dizer. Um homem alto e muito magro mandou-me entrar, ofereceu-me uma cerveja, fez-me algumas perguntas por causa da garrafa que eu lhe entreguei e apresentou-me algumas pessoas. Ele, pelos vistos, também não conhecia todos os presentes. A Vienna, entretanto, tinha ido a um sítio qualquer e não ainda não tinha chegado.
Acabei por me sentar numa cadeira que tinha outra igualzinha mesmo ao lado, onde acabei por ficar quase uma hora. A cadeira ao lado da minha estava livre e, por isso, de vez em quando alguém se sentava ali e começava a falar comigo sem mais nem menos. Alguns, que não sabiam que eu era português, falavam em alemão, ao que eu respondia sempre da mesma forma, dizendo em inglês que não estava a perceber.
Durante esse tempo reparei numa mulher que, por qualquer motivo, me interessou bastante. Não é que fosse especialmente bonita (a Vienna, por exemplo, era muito mais atraente). Foi qualquer coisa daquelas que não conseguimos explicar, mas que faz com que de repente não pensemos em mais nada senão em conhecer aquela pessoa. Como quase todos os presentes estavam a rodar pela cadeira junto à minha, decidi ficar ali sentado à espera que chegasse a vez dela. Dessa forma poderia meter conversa discretamente, com o álibi de quem nem sequer tinha sido eu a ir ter com ela.
Pois bem... acho que ela foi das únicas que não se sentou ao meu lado. Na verdade, nem sequer olhou para mim durante todo esse tempo. Comecei, de certa forma, a ficar angustiado. Como tinha que ir embora, sabia que o tempo para a conhecer estava a passar e era limitado, como se de uma ampulheta se tratasse. Quando a Vienna chegou, finalmente, percebi que elas eram uma espécie de melhores amigas. Só nesse momento é que a conheci, pois foi-me apresentada. Chamava-se Lena e era portuguesa. Pelos vistos, a Vienna tinha-me dito que tinha uma grande amiga portuguesa mas eu, distraído como sou, nem sequer tinha ouvido.
Nesse momento, e porque entretanto já tinha bebido algumas cervejas, expliquei-lhe que tinha estado a noite toda à espera que se sentasse ao meu lado, só para a poder cumprimentar. Ela, não gostando muito do rumo da conversa, afastou-se. Lembro-me que fiquei desiludido e com uma pequena dor de barriga.
Eram cerca das cinco da manhã quando peguei na mochila para me ir embora e comecei a despedir-me dos poucos que ainda estavam presentes. A Lena era uma delas e ficou surpreendida. Expliquei-lhe que tinha um encontro em Praga nessa mesma tarde e tinha que mesmo que ir. Ela, para minha surpresa, ofereceu-se para me acompanhar à estação e foi assim que tive, muito provavelmente, umas das melhores meias horas da minha vida.
Nessa meia hora de vida apaixonei-me totalmente e, antes de entrar para o comboio, procurei-lhe no fundo dos olhos aquela sensação que tinha encontrado nas suas palavras: a de que valia a pena eu mudar de planos por uma incerteza. Tive dúvidas, para ser sincero. Trocámos contactos, um beijo tímido nos lábios e eu despedi-me. Nunca mais a vi.
17 comentários:
Prequela interessante do Before Sunrise (filme de 1995, pois claro). O personagem apercebe-se de que havia ajuizado mal ao não ficar com a Lena e depois da sua eurotrip acaba por conhecer a Céline no comboio de regresso a Vienna, sendo que desta vez não volta a cometer o mesmo erro e opta por relacionar-se com uma rapariga que acha interessante. Entretanto, o protagonista teve tempo para mudar de nacionalidade, nome e reescrever mentalmente todo o seu background.
Belo texto! Tal como aquele "a segunda impressão" também etiquetado nas "crónicas de engate".
Saudações
Post-scriptum: Aprazer-me-ia bastante, caso haja resposta a este comentário, se essa mesma fosse escrita sem o habitual smile no final, com o qual não vou muito à bola. Manias minhas...
Uau! Até me arrepiei! :D
mb, olha que giro. por acaso adoro esse filme, mas nem me lembrei dele quando escrevi isto. Obrigado pela dica. Em 95 andei mesmo por ali. :) (o smile é uma opção minha e não de quem lê)
eli, obrigado. :)
Estreou ontem no Sundance Film Festival a última parte dessa trilogia, Before Midnight, desta vez com o Jesse e a Céline juntos na Grécia, nove anos após o encontro anterior.
Saudações
mb, ena! obrigado. vou estar atento. :)
Excelente história de vida para contar :) aguardo o dia em que vou poder pôr uma mochila às costas e deambular também pela Europa. Acho que deve enriquecer-nos de uma maneira que não seria igual se fosse de qualquer outra forma...
mary, obrigado. estamos sempre a tempo. :)
quem sabe, um dia ainda lê isto =)
charli wolf, já me aconteceu uma coisa parecida. :)
Posso perguntar-te qual é o teu estado amoroso neste preciso momento? :)
Já tive uma história semelhante. Cruzamo-nos um dia, falamos das nossas perspectivas de vida e depois eu não tive coragem para mais e segui a minha viagem. Não soube mais nada dessa pessoa. Mas aquelas palavras que trocamos, ajudaram-me a crescer tanto, mas tanto como pessoa! Jamais esquecerei!
Como se costuma dizer, vale mais a intensidade do que a longevidade da vida.
Caramba, que história.
Pegando nas tuas histórias, dava para fazer um bom filme!
EJSantos
eva maria, 20 de 1 a 20. :)
carla, às vezes é... mas as duas, intensidade e longevidade, combinam bem. :)
ejsantos, é o que eu faço com elas, no fundo. :)
Só não percebo para quê o contacto desperdiçado, mas prontos...
Barata
barata, não vejo a coisa assim. :)
Nem eu, totalmente. Foi uma visão um pouco radical a que assumi. Mas mesmo assim...
Barata
Barata, a lei das probabilidades é isso mesmo: uma probabilidade. :)
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