11.24.2015

limpar os pés e pedir licença

Uma excitação levemente alcoolizada. Era o momento perfeito, pensou ele assim que ela o convidou para subir. Tinha-a acompanhado a casa apenas pelo tradicional cavalheirismo e agora adivinhava um mundo de prazer à sua frente, pelo menos por uma noite. Sexo quase de certeza e, com sorte, repetido na manhã seguinte. 

- Só um copo de vinho, então! - disse.

Ela sorriu. Adorava que os homens não admitissem ao que iam. Sempre lhe pareceu que eram os mais sinceros na cama, aqueles que eram mais mentirosos nas palavras. O último com que tinha tentado rasgar a solidão em que vive dissera apenas "claro!" e, com tanta ânsia e clarividência masculina, ela acabara a olhar para uma melga que tropeçava no tecto do quarto enquanto ele se masturbava dentro dela. Fez-lhe o favor de o deixar acabar e depois inventou uma desculpa qualquer para o mandar embora. Não houve manhã seguinte.
Subiram num elevador demasiado pequeno para os dois. Ainda não era o momento de se tocarem e, sobretudo, de se cheirarem. Depois de uma noite a dançar num dos poucos bares da cidade onde ainda se fuma, não era pelos aromas que se iam atrair. 

- Em que andar vives?
- Quinto. É rápido.

Ela abriu a porta e entrou primeiro, sem limpar os sapatos no tapete. Foi à cozinha confirmar que tinha uma garrafa de vinho tinto com um rótulo que não parecesse muito mau. Ele demorou alguns segundos no tapete de entrada e depois, já sem contacto visual com ela, pôs a cabeça dentro de casa e pediu licença com o primeiro passo.

- Não sejas tolo. Entra!

A vantagem do vinho é que substitui as palavras quando elas ficam presas na língua. Deram alguns goles pequenos entre sorrisos amarelos e atrapalhados, até ele se encostar à parede e desligar o interruptor da luz com as costas. Foi sem querer, mas pareceu de propósito. O primeiro beijo não teve testemunhas oculares.
Não era a primeira vez que passava a noite na casa duma mulher acabada de conhecer, mas sentia-se um pouco intimidado. Além disso, sempre achou que o melhor Amor é aquele em que se entra devagar, a pedir licença depois de limpar bem os pés. 
Já na cama, nu e com o falo no descanso do guerreiro, lembrou-se do seu primeiro pensamento: "com sorte, sexo na manhã seguinte". Ela também já dormia mas, entre os seus sonhos, abraçou-o e pousou-lhe a cabeça no peito com a leveza duma andorinha.
O sexo em que se limpa os pés à entrada e se pede licença é o sexo que se prolonga no tempo. Às vezes na vida.
Quem sabe?

10 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito.

Salsa disse...

Huau!!!
já vi esta cena em algum lugar a minha vida!

marta disse...

:) muito bom!

Ivar C disse...

anónimo, obrigado. :)

nuno salsa, bem vindo. :)

marta obrigado. :)

Janita disse...

Com ou sem pedidos de licença para entrar numa casa para onde já se sabe ao que se vai e limpando ou não os pés do tapete da entrada- o que acho muito bem - não compreendo como é que uma mulher leva para sua casa e mete na cama um fulano que nunca viu antes mais pintado!

Esse tipo de comportamentos são assim tão normais a ponto de os achar que podem ficar para a vida?

Na verdade, quem não compreende estas mulheres ( e já agora estes homens) sou eu!

Decididamente, não nasci para ser deste tempo!

Janita

Ivar C disse...

Janita, eu compreendo, por acaso. Não sempre, mas algumas vezes... :)

S.o.l. disse...

Deixo aqui algumas notas:
- Por vezes, já com alguma maturidade, não se quer perder tempo namoriscos. Encara-se o sexo como algo natural. Faz parte de uma relação, e tem de ser bom para que a relação subsista.
- Há muita falta de carinho, atenção, de alguém que esteja ali só para ouvir. Que conforte.
- Há também muita gente a olhar para onde poisam as melgas nesta busca de algo que nos faça sentir.

Há sempre um inicio Bagaço, quem sabe? :)
Beijinho

Ivar C disse...

s.o.l., o sexo é uma necessidade também emocional, sim, mas admito que não entendi a parte das melgas. :)

S.o.l. disse...

ahahaha quis dizer que há muitas mulheres que durante o sexo pensam em muita coisa (como por exemplo nas melgas que sobrevoam os tectos dos nossos quartos) menos naquilo que estão a fazer.
Houve alguém que lhes despiu a roupa mas não a alma... ;)

Ivar C disse...

s.o.l., muito bem compreendido. :)