É tudo normal na ponta de um cigarro.
É tudo normal na ponta de um cigarro. Ela dá mais uma passa e diz que vai deixar de fumar assim que arranjar coragem. Fico a vê-la por um instante. Talvez seja o cigarro a fumá-la a ela, não sei bem. As mãos tremem-lhe e a pele está mais velha do que o tempo que já viveu. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
Uma vez, há muitos anos, estivemos apaixonados. Éramos novos e durante três dias acreditámos que ia ser para sempre. Não foi. Ao terceiro dia ela recusou-se a beijar-me e mergulhou no rio a sorrir. Lembro-me da disponibilidade da água para afogar toda a tristeza. A dela e a minha. Era a água, a mesma que agora está aprisionada dentro duma garrafa de plástico ao lado do cinzeiro usado, à espera que uma moeda de um euro a liberte. Penso no presidente da Nestlé a afirmar que os seres humanos não devem ter direito à água. O que seria de mim nessa tarde sem acesso à água? Não sei. Teria sede da vida. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
- Lembras-te de nós?
E ela abana afirmativamente a cabeça. O queixo trémulo e o cigarro a fumá-la já quase no filtro.
-Ainda tenho a flor que me deste, seca, entre as páginas de um livro qualquer...
Era amarela. É do que me lembro. Resgatei-a duma fenda no alcatrão da estrada e dei-lha. Senti-me um herói. A qualquer momento, o pneu dum automóvel ia esmagá-la para sempre. Assim não. Perdura no tempo entre as palavras dum livro que eu não sei qual é, mas sei que existe. É suficiente. É dum tempo em que as sementes cresciam de forma aleatória por aí, sem a Monsanto e sem o gene suicida, à espera duma morte natural. Até no chão impermeabilizado que ligava as cidades. A minha e a dela. O que seria de nós, de mim e dela, sem uma morte natural? Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
- Somos tão estúpidos quando somos jovens! - E acende outro cigarro.
- Somos... - Concordo sem perceber porquê.
De toda a estupidez que já vivi, a dela foi a mais curta e feliz. O que nos sobrou de três dias foi uma vida inteira. Sem uma Economia medonha a esmagar-nos a esperança, sem uma dívida que ninguém sabe bem de onde veio, sem um governo a aniquilar uma população inteira e a perpetuar o cadáver de um jogador de futebol. Éramos só nós, a gostar imensamente da vida e de um rio por três dias. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
Ela é bonita. Ainda, digo eu. Às vezes olha-me de lado, como se tivesse medo de enfrentar o passado, e eu percebo porque é que gostei dela. Era bonita, sorria, mergulhava na água e guardava as flores silvestres que eu lhe dava. Para sempre, diz ela, como se isso existisse. E o cigarro a fumá-la.
Ao vê-la a ela vejo um mundo inteiro que acabou, onde todos perdemos a mais óbvia das coisas: o direito a ser feliz por três dias. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
Uma vez, há muitos anos, estivemos apaixonados. Éramos novos e durante três dias acreditámos que ia ser para sempre. Não foi. Ao terceiro dia ela recusou-se a beijar-me e mergulhou no rio a sorrir. Lembro-me da disponibilidade da água para afogar toda a tristeza. A dela e a minha. Era a água, a mesma que agora está aprisionada dentro duma garrafa de plástico ao lado do cinzeiro usado, à espera que uma moeda de um euro a liberte. Penso no presidente da Nestlé a afirmar que os seres humanos não devem ter direito à água. O que seria de mim nessa tarde sem acesso à água? Não sei. Teria sede da vida. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
- Lembras-te de nós?
E ela abana afirmativamente a cabeça. O queixo trémulo e o cigarro a fumá-la já quase no filtro.
-Ainda tenho a flor que me deste, seca, entre as páginas de um livro qualquer...
Era amarela. É do que me lembro. Resgatei-a duma fenda no alcatrão da estrada e dei-lha. Senti-me um herói. A qualquer momento, o pneu dum automóvel ia esmagá-la para sempre. Assim não. Perdura no tempo entre as palavras dum livro que eu não sei qual é, mas sei que existe. É suficiente. É dum tempo em que as sementes cresciam de forma aleatória por aí, sem a Monsanto e sem o gene suicida, à espera duma morte natural. Até no chão impermeabilizado que ligava as cidades. A minha e a dela. O que seria de nós, de mim e dela, sem uma morte natural? Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
- Somos tão estúpidos quando somos jovens! - E acende outro cigarro.
- Somos... - Concordo sem perceber porquê.
De toda a estupidez que já vivi, a dela foi a mais curta e feliz. O que nos sobrou de três dias foi uma vida inteira. Sem uma Economia medonha a esmagar-nos a esperança, sem uma dívida que ninguém sabe bem de onde veio, sem um governo a aniquilar uma população inteira e a perpetuar o cadáver de um jogador de futebol. Éramos só nós, a gostar imensamente da vida e de um rio por três dias. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
Ela é bonita. Ainda, digo eu. Às vezes olha-me de lado, como se tivesse medo de enfrentar o passado, e eu percebo porque é que gostei dela. Era bonita, sorria, mergulhava na água e guardava as flores silvestres que eu lhe dava. Para sempre, diz ela, como se isso existisse. E o cigarro a fumá-la.
Ao vê-la a ela vejo um mundo inteiro que acabou, onde todos perdemos a mais óbvia das coisas: o direito a ser feliz por três dias. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
2 comentários:
A nostalgia da felicidade que era só nossa, tal como a infelicidade. Agora, parece que nos roubam até o direito a sentirmos algo que apenas a nós pertença.
Beijos, Bagacinho. :)
Maria Eu, beijinho. :)
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