10.02.2014

respostas a perguntas inexistentes (289)

À medida que os anos passam e vamos envelhecendo, as nossas memórias afastam-se e vão ficando cada vez mais pequeninas. É como se fossem objetos no espelho retrovisor dum automóvel em andamento que numa curva qualquer podem desaparecer para sempre. Às vezes apetece-me encostar e ficar a olhar para trás, na esperança de que alguma decida vir ter comigo, mesmo que apenas por alguns momentos.
Pelas minhas contas foi há vinte e seis ou vinte e sete anos que eu ganhei o hábito de, sempre ao fim da tarde, sair de casa e sentar-me num muro que ficava a uns dois quilómetros de distância. Não fazia mais nada do que ficar ali sentado a ver a vida a passar. Depois, quando a hora do jantar se aproximava, voltava para casa.
Nunca expliquei a ninguém, nem sequer a mim mesmo, por que motivo o fazia. Sei apenas que o fazia e que me sentia bem ao fazê-lo. Acho que sentia a capacidade de parar perante um mundo que continuava a mover-se indiferente a tudo. No fundo, sentia-me um observador, totalmente isolado e independente, como se fosse um cientista num laboratório a olhar para ratinhos brancos.
Os meus ratinhos brancos, claro, eram as pessoas que passavam por mim. Algumas em passo apressado, outras mais calmas e outras ainda que esperavam apenas pelo autocarro numa paragem que era mais ou menos concorrida.
Houve um dia qualquer em que a Joana se sentou ao meu lado. Quando digo ao meu lado, digo mesmo ao meu lado, naquilo que se pode considerar uma distância reservada a pessoas íntimas. A mão dela tocou na minha, que por sua vez abraçava uma das esquinas do muro. No princípio não disse nada, mas depois admitiu que estava curiosa por me ver sentado ali quase todos os fins de tarde. Não me via a andar nem depressa nem devagar, muito menos a entrar num autocarro. Apercebi-me que para ela, que vivia num dos apartamentos mesmo em frente e a janela do quarto dela dava para o muro onde eu me sentava, eu era o ratinho branco.
Vinte e seis ou vinte e sete anos é uma quantidade de tempo que não me parece tão grande como quando eu me sentava nesse muro, o que é natural. Como tinha vivido menos, o tempo que passava era sempre gigantesco, pelo menos quando comparado com a minha reduzida vida. 
Ainda assim, esta memória estava a desaparecer. Só a recuperei num jantar que fiz a semana passada com a Joana, que ainda é minha amiga hoje em dia, depois de alguns períodos em que estivemos mais próximos e outros mais afastados. Ela lembrava-se de alguns pormenores, eu de outros, e acabámos por reconstruir um dos pequenos cantinhos da minha vida. Da dela também, claro.
A memória coletiva é sempre mais eficaz e certeira do que a singular. É por isso que, quando encosto o automóvel para olhar para trás e tentar recuperar alguma coisa perdida, gosto de levar alguém ao meu lado.

9 comentários:

Terapia das palavras... disse...

As vezes gostava muito que a vida me devolvesse, emoçoes, pessoas, lugares que foram ficando la atraz,,mas o meu carro nao anda para traz,,,e eu sempre tive esta estupida mania de so olhar para um dos espelhos,,e as vezes esqueço.me que o retrovisor por exemplo,nos da uma maior precepcçao da estrada !!

Gosto do teu blogue.!

Ginger made in Japan disse...

já há algum tempo que leio os teus textos mas este agradou-me em particular. Há dias falava com um amigo sobre o facto de parecer que me esqueço das coisas muito facilmente, e ele diz-me que não é esquecer em si, mas sim ter dificuldade em aceder, como se de uma gaveta estragada se tratasse. Realmente, com alguém ao lado é muito mais fácil abrir essas gavetas :)

Ivar C disse...

terapia das palavras, obrigado. :)

inês silva, tenho essa tese do "aceder" também... :)

Varrendo Migalhas disse...

Já tinha saudades de te ler...
Identifico-me tanto com a nostalgia que transmites no teu texto. Gostava tanto de poder reviver algumas boas alturas da minha vida...guardo-as na memoria, mas com o passar do tempo elas vão desgastando-se e temo que fiquem esquecidas.

Ivar C disse...

Maria Varredora Pau de Vassoura, a não ser por causas biológicas graves, não acredito no esquecimento. acredito, como diz a Inês, no acesso e na falta dele. :)

redonda disse...

Gosto de pensar que algumas memórias poderão ficar guardadas numa espécie de gavetas e que a qualquer momento poderei abrir a gaveta e reviver esses momentos.
Gostei muito deste texto.
um beijinho
Gábi

Ivar C disse...

redonda, obrigado. é mesmo por aí, beijinho. :)

Liu Paim disse...

que lindo...

Ivar C disse...

liu paim, :)