uma estátua de pedra
Lembro-me da caixa de fósforos em cima da toalha vermelha. Não parecia verdadeiramente uma caixa de fósforos. As superfícies ásperas ainda estavam intactas e ladeavam a reprodução de uma pintura naif. Era uma paisagem com um rio e algumas casas coloridas. Assim à primeira vista, podia tratar-se de um objecto de decoração e não de uma caixinha de fósforos.
- Que gira! - disse eu enquanto a observava com a ponta dos meus dedos.
Foi nesse dia que percebi que tinha uma espécie de sexto sentido relativamente a um aspecto muito particular dela. Ainda ia a subir a escada que dava para o terceiro andar onde ela vivia quando tive um calafrio. Cheguei a pensar voltar para trás e desaparecer, mas já tinha tocado à campainha para ela me abrir a porta do prédio. O intercomunicador do edifício tinha-se mantido mudo e o som da fechadura a soltar-se soou-me de uma forma particularmente agressiva. Ela estava com vontade de descarregar uma fúria qualquer em alguém.
- É apenas uma caixa de fósforos. Não tem nada de giro! - respondeu.
Mantive o silêncio. Sentei-me no sofá tentando não fazer ruído nem sequer com o a sola dos sapatos que pareciam querer irritar-me quando tocavam no flutuante da sala. Fiquei a vê-la do lado de fora da varanda, através do cortinado branco como se fosse uma sombra chinesa. Era tão bonita! Mesmo quando fumava cigarros nervosos e se transformava numa sombra era bonita.
Depois entrou e tornou a revelar as cores que lhe davam vida. O vestido vermelho e levemente decotado, o pescoço fino e frágil, o cabelo frisado da cor de mel e uma tatuagem em miniatura que vivia num dos seus braços como um insecto adormecido. Era uma mosca.
- Não trouxeste vinho? - Perguntou
- Pensei que tínhamos combinado jantar fora... - arrisquei.
- Mas não vamos. Não me apetece sair de casa e aqui sinto que não há espaço suficiente para os dois, muito sinceramente.
Levantei-me e dei-lhe um abraço a que ela não correspondeu. Foi a primeira vez na minha vida, aliás, que abracei uma estátua. Dura, de braços caídos e endurecidos, ficou assim enquanto desfiz o nó dos meus braços à volta dela e me afastei lentamente. Vesti o casaco e saí sem uma palavra. Foi nesse momento, graças ao cravo que estava preso ao bolso exterior daquela peça de roupa, que retomei a consciência que era a noite de 24 de Abril.
Foi nessa noite que conheci aquele que é ainda hoje um dos meus melhores amigos. Um homem de esquerda que me viu ao balcão de um bar a tentar afogar violentamente o meu dia num copo de uísque. Aproximou-se e deu-me um cravo novo, como que sugerindo que o meu estava amarrotado. E estava. Era o cravo e era eu, amarrotados pelo simples facto de me sentir apaixonado por uma estátua de pedra.
Contei-lhe a pequena história da minha noite. Às vezes é mais fácil despejar tudo num estranho do que num amigo de todos os dias. Existe a probabilidade de nunca mais o vermos e do nosso desabafo desaparecer com ele, da mesma forma que desaparece um vulto quando vira uma esquina no fundo duma rua. A coisa não durou muito tempo, mas terminou com o meu uísque bebido num só gole.
- Precisava de conseguir não me apaixonar. Era só isso! - pousei o copo.
- As pessoas que não se apaixonam não fazem revoluções. - respondeu.
Levantei os olhos para o mundo. A maior parte das pessoas ali presentes tinha um cravo vermelho reluzente ao peito. Reparei como todas tinham articulações. Os braços e as pernas mexiam-se ao som de músicas contemporâneas da revolução trocando abraços tão suaves quanto genuínos.
Tal como numa revolução, decidi pela primeira vez olhar para o futuro e deixar de Amar estátuas de pedra.
12 comentários:
"Ela estava com vontade de descarregar uma fúria qualquer em alguém."
Hmm, assim não foi longe, pois não?
(sinceramente, detesto, mas detesto mesmo, pessoas assim; comigo ela não tinha muita hipótese de descargas...)
Bem, mas arranjas-te um amigo. Gosto muito de gente assim, generosa.
EJSantos
Tocou-me profundamente e nestes 40 anos criaram-se milhares de estátuas de pedra, outras paralisadas pelo capitalismo selvagem de meia dúzia de "saltimbancos" e temos que os gramar...
Mesmo assim...há que olhar para o futuro, porque o meu em 1975 foi para "nenhures" e aqui estou e sempre pronta, porque deram-me Liberdade que jamais virará "estátua de pedra" e sobretudo acabaram com a sangria de tantos jovens por uma guerra dantesca.
Não estamos bem de forma alguma mas temos ainda o direito ao "voto" e várias opções...e fico-me por aqui!
Desculpa...mas foi o que senti ao ler mais esta tua pérola.
Um abraço e vamos continuar a olhar para o futuro!
ejsantos, comigo tinha... de facto pode ser uma coisa a reflectir. :)
fatyly, obrigado. temos direito ao voto às vezes. Não tivemos para referendar, por exemplo, a vinda da troika para Portugal. :)
Pois não e também não fomos referendados para entrarmos na CEE versus UE e também nas duas vezes que vieram na época do tal MS!!!!
Gostei muito desta história e do amigo então encontrado.
fatyly, exactamente. :)
redonda, :)
"Precisava de conseguir não me apaixonar." - É o que penso quase todos os dias de manhã.
Matilde
Matilde, é um pensamento que todos temos uma vez por outra, acho eu. todos os dias de manhã é demais... :)
Bagaço, simplesmente brutal.
Cada texto teu...
Infelizmente o mundo está cheio de estatuas de pedra...e infelizmente muitas vezes só nos apercebemos tarde de mais e ai já nos apaixonamos...
"Reparei como todos tinham articulações."? é linear ou há figura de estilo? não percebi
Fizeste-me lembrar um final de tarde aqui em Lisboa, onde estava um "senhor-estátua" que me fez lembrar o conto de Sophia de Mello Breyner Andresen. Na história, o "Rapaz de Bronze" diz: "De dia somos imóveis, mas de noite somos livres e dançamos". Bela passagem que me traz recordações lá de trás de uma outra vida minha. Eu tenho um grande problema de me apaixonar sempre poor algo semelhante a estátuas... ou quase sempre.
anónimo, obrigado. :)
serendipidade, não, isso é para contraria o efeito estátua. :)
eli, obrigado. :)
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