4.09.2014

respostas a perguntas inexistentes (272)

O primeiro homem que eu conheci que falava constantemente ao telemóvel nem sequer tinha telemóvel. Era um tipo alto, coisa para mais de um metro e noventa, magro e bigode farto, que caminhava sozinho pelas ruas da cidade de Aveiro a falar sozinho com uma mão colada à orelha esquerda. Na altura nem sequer existiam telemóveis, mas ele lá imaginava que tinha um meio de comunicar com alguém.
Muitas vezes, a sair do BA (Bar da Associação que, na altura, ficava perto do estabelecimento prisional) às quatro ou cinco horas da manhã, via-o a caminhar como se estivesse numa missão secreta qualquer, de colarinhos levantados e sempre a comunicar com um entidade imaginária.

- Eles vêm aí, eles vêm aí! - dizia.

Eu e os meus amigos mais próximos começámos a chamar-lhe o 008, numa homenagem ao detective mais famoso da História do Cinema, mas o que era óbvio para todos é que ele, para além de sofrer duma doença mental qualquer, era também um tipo extremamente solitário.
Já não o vejo há alguns anos. Tanto quanto me lembro, a última vez que me cruzei com ele foi numa pastelaria perto da rotunda das Glicínias, provavelmente no ano de 2005, mas nunca mais me esqueci daquela pesada e abrangente solidão que ele carregava aos ombros. Nesse fim de tarde, estava ele à mesa da pastelaria a falar sozinho, com uma mão na boca e outra na orelha, quando eu reparei que ele não tinha meias dentro dos sapatos gastos nem estava a consumir nada. Decidi nesse dia pagar-lhe o lanche e, para meu espanto, ele agradeceu normalmente.

- Muito Obrigado! - disse.

Hoje lembrei-me dele quando fui tomar o primeiro café do dia ao tasco mais perto da minha casa. Uma mulher falava ao telemóvel com alguém que, não sei explicar bem porquê, me pareceu ser também uma entidade imaginária. Acho que era a conversa que não colava bem com nada. Quando finalmente se calou e pousou o objecto na mesa ao lado da minha, tive a certeza que sim, que a conversa dela era inventada. O telemóvel era bastante antigo e estava desligado. Depois olhei bem para ela e reconheci-a. Há pouco mais de vinte anos, creio que em 1988 ou 89, foi minha colega num daqueles primeiros cursos de formação que a CEE (agora UE) patrocinou neste país.
Ela não me reconheceu, isso é certo, mas eu lembro-me perfeitamente do momento em que, estávamos todos nós, alunos desse curso, a fazer um pequeno intervalo cá fora, na Avenida Lourenço Peixinho, quando o 008 passou por nós em passo apressado e a falar sozinho.

- Parece maluquinho! - disse ela.

9 comentários:

Mónica disse...

O 008 fez-me lembrar senhor que costumava estar nos cruzamentos, principalmente na avenida, a regular o trânsito com um apito. Dizem que morreu. E uma senhora de penteado alto e fato de saia-casaco de aspecto muito distinto que passava tardes a subir e a descer a Avenida, sempre com ar de quem sabia para onde ia...Às vezes tenho saudades dos "malucos de Aveiro". Hoje, a Avenida até isso perdeu :(

Anónimo disse...

Esse senhor faleceu há uns anos...foi atropelado na rua por tras da estação.

Parabéns pelo blog.
Mariana

Ivar C disse...

Mónica, esse do apito está a pedir num prédio perto do Oita, onde fica um supermercado... :)

Mariana, parece que não foi esse que morreu. Por acaso, através do FB (onde ponho estes textos), disseram-me que foi visto a semana passada. De facto morreu um atrás da estação, sim, mas não era este. :)

EJSantos disse...

" Parece maluquinho! - disse ela."
Sim, muitos parecem maluquinhos. E se um dia somos nós?

A tua atitude de lhe pagar o lanche foi generosa.

Quanto a maluquinhos, temos tidos alguns que aparecem com frequencia na televisão, com uma conversa obsessiva sobre Troikas, mercados (financeiros, não os bons, os de bairro) austeridade. Estes sim, metem-me medo.

Fatyly disse...

Em todos os lugares existem essas "pessoas". Na minha terra havia a Joana Maluca e o Zé Pardal...figuras que nos amedrontavam em pequenos, mas depois com o passar dos anos sabíamos que afinal não eram assim tão medonhos.

Aqui já houve vários, homens e mulheres marcados pela vida, mas tenho imensas saudades do "Chico" e do "Papa Bifes". Este último foi meu colega de trabalho. Endoideceu por completo e calcorreava as ruas daqui sempre a discursar sobre "os seus fantasmas como...estamos na terceira vaga, os ciclos sucedem-se e o maluco sou eu". Vivia com os pais numa casa arrendada, piorou ainda mais com a morte de ambos num intervalo de dois meses, foi reformado por invalidez e o colega do balcão lá controlava a sua conta porque não o deixava levantar o que queria já que lhe gamavam. "Papa Bifes" porquê? Porque comia um bitoque em apenas 4 garfadas, impressionante.
Actualmente está num lar bem longe daqui e não sei o seu estado.
"O Chico" era o controlador da canalha a caminho da escola e ai de quem se metesse ou fizesse alguma coisa. Sempre que me via pedia blocos e uma caneta e lá rabiscava no papel e punha no vidro de carros mal estacionados.
Tantas lembranças boas. O seu irmão que é médico tudo fez por ele...mas preferia sempre a rua. Um dia levou-o para casa da irmã algures no Alentejo. Duas semanas depois apareceu aqui e estava nas urgências. Então Chico que tens! Ai aqui uma dores, não sei por onde andei, sei que andei muito e nunca mais entro no carro do gajo. Qual gajo? o que diz ser meu irmão:)
Há uns anos que não o vejo e indaguei. Disseram-me que é jardineiro (tinha jeito mas demorava séculos a fazer alguma coisa) de qualquer coisa onde vive no Caramulo. Porque não voltou? Teve de ser sedado para não fixar o caminho, para ser hospitalizado por qualquer coisa pulmonar e por lá ficou, mas que está bem!

00oitos que marcam gerações!

Gostei e desculpa o comentário ter sido grande demais:)

Anónimo disse...

Há muitos solitários por aí e bastante rodeados de gente. ;)

Ivar C disse...

ejsantos, concordo. na verdade, os verdadeiros malucos nunca se consideram malucos. são só os outros... :)

fatyly, tens razão... em todas as terras há pessoas que marcam pela diferença. Lembro-me de um tipo em Lisboa que dizia adeus aos carros que passavam. Morreu há uns dois anos... :)

osolbrilhaaqui, pois há... aliás, acho que a concentração excessiva de pessoas traz a solidão. :)

Olga disse...

O que não falta por aí são malucos com ar de gente "normal".
Acho que essas pessoas se fartaram deste mundo podre e inventaram um só para si. Quem sabe se não são mais felizes assim.

Ivar C disse...

olga, que forma interessante de descrever a coisa. :)