não desisto
São dez da manhã e estou à espera de ser atendido no Centro de Emprego. Não faço a mínima ideia que só vou sair dali às quatro e vinte da tarde, depois de uma longa e inesperada espera. Hoje foi este o meu dia.
Tenho na mão uma capa com toda a papelada que acumulei desde que caí nas malhas do desemprego, incluindo todo o processo que vou levar a tribunal, mais o primeiro volume de 1Q84, do Haruki Murakami, que a minha namorada me ofereceu. Nunca agradeci tanto um presente, acho eu.
Já li, aliás, cerca de cem páginas do livro quando o meu estômago começa a dar os primeiros sinais de apetite. Tenho a senha B091 e vai na B034. É uma da tarde. Passo em revista quase todas as caras das pessoas que se amontoam naquele espaço exíguo, algumas em pé, outras sentadas. Há alguns sorrisos que me parecem esforçados, há ausência na maior parte dos rostos e, para piorar, sinais de evidente derrota em alguns deles.
O homem ao meu lado, por exemplo, que deve ter uma idade a rondar os sessenta anos, está ferido num olho e sua tristeza por todo o corpo. Tira um bocado de pão do bolso esquerdo e come-o em pequenos pedaços, sem mais nada, escondendo-o dos demais. Não é por medo que lho roubem. É, parece-me, para preservar alguma eventual réstia de dignidade que ainda tenha.
Algumas vozes, ainda que contidas, protestam com as funcionárias que vão chamando lentamente os utentes. Chamam-lhes preguiçosas das mais diversas maneiras mas, em abono da verdade, acho injusto. Não vi nenhuma parada. Sei por experiência própria que alguns processos são bastante demorados. Não deixa é de ser curioso que, onde há tantos desempregados à espera de vez, não empreguem mais ninguém para atender. Rio-me, para dentro, do meu próprio país. Tenho pena de o fazer.
Sinto um toque no joelho. É uma criança que olha, babada, para o chocolate que entretanto abri. Parto uma porção generosa para lhe dar, mas primeiro procuro a autorização no olhar da mãe, que está algumas cadeiras ao meu lado. Ela abana ombros, consentindo com vergonha. A criança agradece, sem saber que eu é que lhe agradeço ainda mais. A mãe tem uns olhos tão bonitos que parecem um oásis naquele deserto de emoções. São negros, e fico com a sensação de que é impossível adivinhar o que está por trás deles. Apaixono-me por dois minutos. Valeu a pena o chocolate. A criança afasta-se.
Fixo os olhos no chão, como que para fugir dali por uns momentos, apesar da noção de que é impossível esconder-me. Fixo uns sapatos cujas solas estão quase todas descoladas. Parecem bocas abertas e, como tal, gritam em silêncio. É o que eu estou a fazer, a gritar em silêncio. A pobreza é pornográfica e está ali, à vista de todos sem chocar ninguém. É chocante.
Não desisto, penso. Chegou a minha vez de ser atendido. Chegará a nossa vez de viver.
Tenho na mão uma capa com toda a papelada que acumulei desde que caí nas malhas do desemprego, incluindo todo o processo que vou levar a tribunal, mais o primeiro volume de 1Q84, do Haruki Murakami, que a minha namorada me ofereceu. Nunca agradeci tanto um presente, acho eu.
Já li, aliás, cerca de cem páginas do livro quando o meu estômago começa a dar os primeiros sinais de apetite. Tenho a senha B091 e vai na B034. É uma da tarde. Passo em revista quase todas as caras das pessoas que se amontoam naquele espaço exíguo, algumas em pé, outras sentadas. Há alguns sorrisos que me parecem esforçados, há ausência na maior parte dos rostos e, para piorar, sinais de evidente derrota em alguns deles.
O homem ao meu lado, por exemplo, que deve ter uma idade a rondar os sessenta anos, está ferido num olho e sua tristeza por todo o corpo. Tira um bocado de pão do bolso esquerdo e come-o em pequenos pedaços, sem mais nada, escondendo-o dos demais. Não é por medo que lho roubem. É, parece-me, para preservar alguma eventual réstia de dignidade que ainda tenha.
Algumas vozes, ainda que contidas, protestam com as funcionárias que vão chamando lentamente os utentes. Chamam-lhes preguiçosas das mais diversas maneiras mas, em abono da verdade, acho injusto. Não vi nenhuma parada. Sei por experiência própria que alguns processos são bastante demorados. Não deixa é de ser curioso que, onde há tantos desempregados à espera de vez, não empreguem mais ninguém para atender. Rio-me, para dentro, do meu próprio país. Tenho pena de o fazer.
Sinto um toque no joelho. É uma criança que olha, babada, para o chocolate que entretanto abri. Parto uma porção generosa para lhe dar, mas primeiro procuro a autorização no olhar da mãe, que está algumas cadeiras ao meu lado. Ela abana ombros, consentindo com vergonha. A criança agradece, sem saber que eu é que lhe agradeço ainda mais. A mãe tem uns olhos tão bonitos que parecem um oásis naquele deserto de emoções. São negros, e fico com a sensação de que é impossível adivinhar o que está por trás deles. Apaixono-me por dois minutos. Valeu a pena o chocolate. A criança afasta-se.
Fixo os olhos no chão, como que para fugir dali por uns momentos, apesar da noção de que é impossível esconder-me. Fixo uns sapatos cujas solas estão quase todas descoladas. Parecem bocas abertas e, como tal, gritam em silêncio. É o que eu estou a fazer, a gritar em silêncio. A pobreza é pornográfica e está ali, à vista de todos sem chocar ninguém. É chocante.
Não desisto, penso. Chegou a minha vez de ser atendido. Chegará a nossa vez de viver.
42 comentários:
Olá Ivar, eu costumo rir ou sorrir quando passo por aqui... menos hoje! Entre chorar e gritar não sei muito bem o que me apetece mais!
Quando saio do centro de emprego venho doente e mal disposta. Tenho tb por hábito fazer o mesmo. Reparar no rosto das pessoas, dos gestos, dos olhares perdidos, das crianças que andam com os pais...
Infelizmente já passei tb horas e horas e as senhoras trabalham, mas o IEFP não é solução para arranjar emprego...
Texto muito bem escrito.Parabéns!
Chocante é pouco.
Deixas-me publicar no Persuacção?
paula silva, também e preciso, acho eu. :)
g. tens razão. é uma fraude, aquilo, mas é uma fraude obrigatória. :)
laura santos, obrigado. :)
são rosas, obrigado. estás sempre à vontade. :)
Tal como a Paula Silva, venho aqui muita vez para me rir e afastar um pouco o cinzento dos dias. Hoje deu-me vontade de chorar. De qualquer modo parabéns por este texto tão bem escrito.
Não podemos desistir. Gosto muito do texto,roubo descaradamente e partilho no fb ;)
Incrível como uma pessoa cheia de talento para a escrita, como tu, não tem emprego. Se fosse directora de um jornal tinhas, com toda a certeza, um canto teu. Lamento não ser... Na verdade, lamento nem sequer ter emprego também!
José Luiz Moreira, eu luto. só choro quando ganhar. :)
tétisq, obrigado. :)
mary, obrigado. força. :)
Tomara que chegue depressa essa vez.
Um retrato muito bem feito.
Nem é fácil sensibilizar-me, mas conseguiu. Os meus parabéns e boa sorte na demanda. Aliás, mais que boa sorte, desejo-lhe persistência.
Curiosamente era essa a ideia que tinha do centro de emprego e no entanto...cheguei lá às 8h15,tirei a senha às 9h00, fui atendida antes das 10h00...isto no dia 04 de Janeiro. Nesse mesmo mês recebi o subsidio a 23 e fui chamada para um "POC" em meados de Janeiro. Tive algo que penso que é novo, uma chamada Gestora de Carreira que por sinal foi sempre incansável...Fora isto, não há local nenhum mais deprimente que o IEFP (n falando em hospitais)
Susana
Pena neste país não se ganhar dinheiro com a escrita, de certo que não terias passado por essasituação hoje. Força.
redonda, obrigado. :)
Daniel M., obrigado. :)
Susana, sorte. Ainda bem. :)
DM, obrigado. :)
É uma verdade horrenda que nos tentam esconder. Estamos cada vez mais pobres, mais derrotados, com menos esperança. Uns não têm emprego e outros suam as estopinhas para conservar o que têm...
No meu caso baixaram o valor das horas nocturnas para 25% do valor hora... Ora como ganho a 8.50 à hora, faz com que ganhe 2 euros e uns trocos por cada hora das noitinhas que os nossos governantes passam quentinhos e a dormir descansados na caminha.
Parece-me bem! F@#%-se
Quero deixar-te apenas um beijo e uma palavra de força. Vais conseguir, mereces conseguir. Não baixes os braços.
***
É uma verdade horrenda que nos tentam esconder. Estamos cada vez mais pobres, mais derrotados, com menos esperança. Uns não têm emprego e outros suam as estopinhas para conservar o que têm...
No meu caso baixaram o valor das horas nocturnas para 25% do valor hora... Ora como ganho a 8.50 à hora, faz com que ganhe 2 euros e uns trocos por cada hora das noitinhas que os nossos governantes passam quentinhos e a dormir descansados na caminha.
Parece-me bem! F@#%-se
Quero deixar-te apenas um beijo e uma palavra de força. Vais conseguir, mereces conseguir. Não baixes os braços.
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ac, obrigado. vou conseguir, sim. vamos todos! :)
Descreveria mais ou menos a realidade assim. "Bate-me" forte, mas eu tenho muita sorte, porque terei sempre o que comer e onde viver. Quem vive da terra tem sempre o que dar, o que trocar e, lá na terra as coisas acontecem sempre assim cheias de naturalidade. Voltarei em breve para lá. Será mais um regresso, mas desta vez a espera interminável porlongar-se-á.
eli, há uma música brasileira de que gosto muito, principalmente pela letra: http://youtu.be/W5TI7iLvHC4 :)
Bolas, pá!!! Logo de manhã e já estou de lágrima no olho!!! Parabéns pelo texto! Posso publicar no blog Cores Solidárias?
Beijinhos
Não gostei.
Gosto do que escreves, levo daqui um sorriso quando te visito.
Nesta vez não gostei. E gostei tanto menos quanto mais me ia percebendo de como é real a descrição, de como escreves bem.
Estou a passar pelo msm, e com este texto tão bem escrito conseguiste que as lágrimas me escorressem pelo rosto..
Posso publicar no meu FB?
Obrigada e mta força para ti..Se bem que sei que às vezes é muito difícil encontrar essa força para continuar a lutar.
Compreendo bem, mas mesmo muito bem o que escreveste. E fiquei deprimido, pois recordei-me do tempo em que tinha que ir ao Centro de "Emprego". Horrivel.
E embora não costume comentar o que os outros te dizem, tenho que dizer:
A Mary tem razão: és um talento na escrita.
E a AC também tem razão: cada vez mais pobres e derrotados.
Como é possivel termos chegados a isto? :-(
EJSantos
fátima, claro que sim. obrigado. :)
maria, obrigado. :)
patrícia figueira, com certeza que sim. obrigado e força!. :)
ejsantos, também é possível sair disto. é para isso que contribuo da forma que sei e consigo. :)
ivar,
estou na mesma situação que tu e o que me choca não é a dificuldade de encontrar emprego, é a indiferença e alienação com que qualquer desempregado é tratado, como se fosse um número e não uma pessoa que tem o direito à felicidade... Um abraço para ti :)
Compreendo bem as tuas palavras, passo pelo mesmo. Uma espera q parece n ter fim, mas q tb n desisto e sei q há-de chegar ao fim.
Dos melhores textos que já li sobre o desemprego.
E gostava mesmo de acreditar que um dia chegará a nossa vez. De todos. De viver neste país.
o olhar do lobo, e como eu fui parar ao desemprego é uma história que, oportunamente, há-de ser divulgada. boa sorte e abraço. :)
cristina oliveira, boa sorte. :)
maria, obrigado. quando digo " a nossa" é com consciência de classe. :)
EXCELENTE texto, Bagaço!
estou sem palavras. Muito obrigada pela tua integridade.
Etelvina
Que tristeza. Aperta-me tanto o coração... nem tenho palavras :(
"ejsantos, também é possível sair disto."
Boa onda. Sim, temos que lutar com esta maré de esterco ideologico.
EJSAntos
E ainda acha uns minutinhos pra se apaixonar :)
Só tu bagaço, para no meio desse caos psicológico...encontrar algo tão belo no olhar dessa criança....
beijo grande
Fantástico texto, apesar de tão triste...
etelvina, obrigado. :)
princesadepantufas, já as tiveste. obrigado. :)
ejsantos, vamos fazê-lo. :)
kelly, é disso que vamos vivendo todos, não é? :)
quase nos "entas", beijo. :)
The Empress, obrigado. :)
adoro ler-te, desconhecido dos meus dias!
vanessa, obrigado pela presença. :)
partilho no blogue. excelente!
=(
memyselfandi, obrigado. :)
Muito bom o texto...tive faz um ano e qualquer nesta situação e ficou-me também algumas situações. Um encontro fortuito com um amigo, o olhar envergonhado de muitos, eu inclusive, o ucraniano e o Ganês que ajudei a escrever uma declaração...a forma efusiva como agradeceram.
O texto fez-me lembrar que tive de voltar Cabo Verde (sei que passaste aqui um Carnaval :) agradável surpresa quando li és amigo do café margoso). Depois de mais de 16 anos voltar para C.V. custou-me imenso Ganhei todos os tiques de alfacinha(bons e maus) e adoro Lisboa. Depois de muito tempo a trabalhar e depois o desemprego...surgiu o dilema, vive-se do subsidio durante algum tempo ou muda-se...uns emigraram eu "desemigrei". tenho saudades, muitas.
É... Um dia vai ser a nossa vez de viver...
Esta descrição, embora pincelada de humor, amor e visão positiva, continua a deixar um aperto no peito, um nó na gargante e uma enorme força para não deixar rolar as lágrimas que os outros choram e que nós não conseguimos impedir. Eu não estou desempregada (por enquanto) mas fui à pouco tempo a um centro de emprego com alguém chegado que tinha ficado desempregado e a quem quis dar o apoio de não passar sozinha por essa descrição. Fiquei lá muitas horas, de pé, sem livro para me distrair e também vi a pobreza, como as vejo nas paragens de autocarro, nos bancos de jardim... a profunda pobreza e a tristeza que corrói o corpo e o olhar...
É... talvez um dia encontraremos uma força de os ajudar a voltar a viver :)
anónimo, sem qualquer tipo de reserva, digo-te que emigrava eu para Cabo Verde. Abraço. :)
Teresa Costa, essa força, não a perco nunca. :)
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