coisas que fascinam (159)
como numa nuvem
Dentro de casa havia várias goteiras e, debaixo delas, alguns baldes coloridos à espera de engolir os pingos que caíam ordenadamente do tecto. Fiquei a olhar para eles, invejando-lhes a paciência com que iam acumulando a água. A mãe da Sónia despejava-os duas ou três vezes por dia, disse-me. Depois mandou-me sentar numa cadeira que tinha uma almofada feita à mão, enquanto esperava que a minha nova amiga acordasse. Aqueci as mãos numa enorme chávena de café quente, que ela me pôs à frente, e fui bebericando tentando não fazer barulho.
Aquele era o tempo de ser feliz. Aos vinte anos, o corpo não é uma fonte de preocupações. É apenas algo de que a nossa alma usufrui. Já levava meia chávena bebida quando aquela senhora, de avental sujo por cima de dois ou três casacos de malha, mo disse enquanto sorria. Trocámos um olhar repentino do qual eu fugi primeiro. Ela sabia porque é que eu estava ali. Não era apenas pela filha dela e pelos sentimentos confusos que gerara dentro de mim. Era também pelos meus vinte anos.
A Sónia apareceu depois, ainda meio ensonada, e pediu-me desculpa por ter adormecido. Peguei num dos baldes, o vermelho, e fiz a mesma coisa que já tinha visto a mãe dela fazer com um azul: despejei-o para o pátio rapidamente e voltei a colocá-lo no mesmo sítio, onde as as primeiras gotas marcaram presença com um som seco e abrupto. Tinha-a conhecido uns dias antes e ela prometera mostrar-me grande parte da ilha da Madeira a pé, mas a inesperada chuva primaveril ameaçara estragar-nos os planos durante os dias seguintes. Apesar de tudo, com um leve corta-vento por cima de uma camisola de algodão, eu estava disposto a fazer-me à estrada, aproveitando o que parecia ser uma ligeira melhoria do tempo. Ela, ainda a emergir do sono profundo da noite, é que parecia menos entusiasmada.
- Se não quiseres vir... - disse eu.
- Vou, vou. Amanhã voltas para o continente e, afinal de contas, o prometido é devido! - respondeu ela interrompendo-me.
Saímos de casa em direcção ao ponto mais alto da ilha, por uma estrada sinuosa que escalava a montanha. Caminhámos em silêncio durante algumas horas, até ela me avisar que estávamos a entrar dentro duma nuvem. O céu, entretanto, tornara-se azul e eu vestia apenas uma t-shirt preta. Foi aí que demos as mãos, já não me lembro por iniciativa de quem. Provavelmente, e porque só o Amor permite esse tipo de sintonia entre duas pessoas, por iniciativa dos dois. Das mãos passámos a um abraço prolongado e depois aos lábios, de forma que, quando chegámos a um pequeno planalto, já cada um dos nossos corpos se tinha habituado à textura e ao calor do outro.
Sentámo-nos numa pedra com vista para os mundos. Dois mundos, mais precisamente, aquele que se estendia debaixo dos nossos pés, e também aquele que acabáramos de criar dentro de nós e do qual éramos os únicos habitantes. O do Amor, digo. Silêncio de novo.
- Amanhã vais embora! - disse ela.
- Vou... - aceitei com um tom de derrota.
Tenho quarenta e um anos e, ainda hoje, me lembro desse dia quando olho para cima e vejo uma nuvem qualquer isolada das outras, como se andasse à procura de alguma coisa. Sei que a Sónia foi um Amor efémero dentro duma dessas nuvens e, mesmo contra algum comichoso moralismo social, tenho a noção de que aproveitei ao máximo o meu corpo de vinte anos.
Hoje, olhando para trás, para as pequenas histórias de Amor da minha juventude, estou de facto a olhar para a frente. Na verdade, foram elas que me ajudaram a conseguir vivê-las ainda hoje, agora com a Raquel e com a certeza dos quarentas. Vou vivendo o Amor da mesma forma que a água pingava nos baldes coloridos desse dia. Sem ansiedade e, acima de tudo, como numa nuvem.
Dentro de casa havia várias goteiras e, debaixo delas, alguns baldes coloridos à espera de engolir os pingos que caíam ordenadamente do tecto. Fiquei a olhar para eles, invejando-lhes a paciência com que iam acumulando a água. A mãe da Sónia despejava-os duas ou três vezes por dia, disse-me. Depois mandou-me sentar numa cadeira que tinha uma almofada feita à mão, enquanto esperava que a minha nova amiga acordasse. Aqueci as mãos numa enorme chávena de café quente, que ela me pôs à frente, e fui bebericando tentando não fazer barulho.
Aquele era o tempo de ser feliz. Aos vinte anos, o corpo não é uma fonte de preocupações. É apenas algo de que a nossa alma usufrui. Já levava meia chávena bebida quando aquela senhora, de avental sujo por cima de dois ou três casacos de malha, mo disse enquanto sorria. Trocámos um olhar repentino do qual eu fugi primeiro. Ela sabia porque é que eu estava ali. Não era apenas pela filha dela e pelos sentimentos confusos que gerara dentro de mim. Era também pelos meus vinte anos.
A Sónia apareceu depois, ainda meio ensonada, e pediu-me desculpa por ter adormecido. Peguei num dos baldes, o vermelho, e fiz a mesma coisa que já tinha visto a mãe dela fazer com um azul: despejei-o para o pátio rapidamente e voltei a colocá-lo no mesmo sítio, onde as as primeiras gotas marcaram presença com um som seco e abrupto. Tinha-a conhecido uns dias antes e ela prometera mostrar-me grande parte da ilha da Madeira a pé, mas a inesperada chuva primaveril ameaçara estragar-nos os planos durante os dias seguintes. Apesar de tudo, com um leve corta-vento por cima de uma camisola de algodão, eu estava disposto a fazer-me à estrada, aproveitando o que parecia ser uma ligeira melhoria do tempo. Ela, ainda a emergir do sono profundo da noite, é que parecia menos entusiasmada.
- Se não quiseres vir... - disse eu.
- Vou, vou. Amanhã voltas para o continente e, afinal de contas, o prometido é devido! - respondeu ela interrompendo-me.
Saímos de casa em direcção ao ponto mais alto da ilha, por uma estrada sinuosa que escalava a montanha. Caminhámos em silêncio durante algumas horas, até ela me avisar que estávamos a entrar dentro duma nuvem. O céu, entretanto, tornara-se azul e eu vestia apenas uma t-shirt preta. Foi aí que demos as mãos, já não me lembro por iniciativa de quem. Provavelmente, e porque só o Amor permite esse tipo de sintonia entre duas pessoas, por iniciativa dos dois. Das mãos passámos a um abraço prolongado e depois aos lábios, de forma que, quando chegámos a um pequeno planalto, já cada um dos nossos corpos se tinha habituado à textura e ao calor do outro.
Sentámo-nos numa pedra com vista para os mundos. Dois mundos, mais precisamente, aquele que se estendia debaixo dos nossos pés, e também aquele que acabáramos de criar dentro de nós e do qual éramos os únicos habitantes. O do Amor, digo. Silêncio de novo.
- Amanhã vais embora! - disse ela.
- Vou... - aceitei com um tom de derrota.
Tenho quarenta e um anos e, ainda hoje, me lembro desse dia quando olho para cima e vejo uma nuvem qualquer isolada das outras, como se andasse à procura de alguma coisa. Sei que a Sónia foi um Amor efémero dentro duma dessas nuvens e, mesmo contra algum comichoso moralismo social, tenho a noção de que aproveitei ao máximo o meu corpo de vinte anos.
Hoje, olhando para trás, para as pequenas histórias de Amor da minha juventude, estou de facto a olhar para a frente. Na verdade, foram elas que me ajudaram a conseguir vivê-las ainda hoje, agora com a Raquel e com a certeza dos quarentas. Vou vivendo o Amor da mesma forma que a água pingava nos baldes coloridos desse dia. Sem ansiedade e, acima de tudo, como numa nuvem.
10 comentários:
Que história linda e tão brilhantemente contada.
Parabéns pela sábia e harmoniosa escolha de palavras na descrição pormenorizada de toda a envolvência.
junto à janela, obrigado. :)
Isso é estar no caminho certo da VIDA!
Gostei muito!
Gostei muito.
um beijinho
Gábi
fatyly, é a única coisa que me vai correndo bem... :)
redonda, obrigado. beijinho. :)
São coisas que me fascinam, realmente.
Olha, nunca pensaste que seria muita "exposição" colocar aqui histórias tão tuas e verdadeiras?
:)
Às vezes penso nisso.
eli, se tu depreenderes que escrevo tudo como realmente foi... :)
Emocionaste-me, porra!!!
:))
queria tanto dizer alguma coisa à altura, mas não estou a conseguir =)
memyselfandi, já disseste. :)
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