8.24.2012

pensamentos catatónicos (278)

Balão

Uma criança de cerca de quatro anos de idade pisou-me hoje, no metro do porto, enquanto saltava sozinha num jogo qualquer próprio da infância. Ao seu lado ia a sua família, tão numerosa quanto silenciosa. O pai pegou-lhe delicadamente num dos braços e mandou-a pedir-me desculpa. A mãe gritou com o pai logo a seguir. "Não faças isso à menina", disse.
A criança ficou perdida, talvez com algum receio de vir pedir desculpa a um monstro de um metro e oitenta e quatro com um capacete de ciclista na cabeça. Olhava para mim de lado, com a mão pequena quase toda dentro da própria boca. Pisquei-lhe um olho. Ela voltou a sorrir.
Saíram algumas estações antes de mim e fiquei a vê-los pela vidraça. Lá fora as crianças dispersaram dentro dum certo limite, como se orbitassem num caos à volta dos dois adultos, que deram um beijo e se abraçaram num gesto notoriamente reconciliador. 
Os gritos são sempre surpreendentes numa relação, porque o são entre quem supostamente se Ama. São, assim, uma contradição em si mesmos. Quando aqueles dois pais começaram a namorar, suponho que há muitos anos atrás, ela não gritava com ele assim. De certeza. No princípio de qualquer relação, o próprio Amor trata de afogar esse tipo de impulsos. É com o tempo que eles vão emergindo de novo e passam a boiar entre beijos, doces trocas de olhares, abraços e sexo.
Os gritos por impulso são como pregos nesse grande balão de hidrogénio que é o Amor entre duas pessoas. Às vezes o balão acaba por cair. Outras vezes não. Por qualquer motivo olhei para aquele pai e para aquela mãe e, só em pensamento, desejei-lhes sorte. Que o balão não caia.

22 comentários:

Junto à Janela disse...

Fez-me pensar além da educação da criança se estivesse na mesma situação.

Que bela analogia. E tão certa!

Ivar C disse...

junto à janela, obrigado. :)

Cafeína disse...

Infelizmente não é difícil encontrar casais assim, em que se nota que já não se amam como antigamente. Seja o stress do dia a dia, o acumular de responsabilidades que, nos tempos de namoro não existia, seja o cansaço provocado pela energia interminável dos filhos pequenos... É preciso não deixar que nada disso afete o relacionamento e destrua um amor de larga duração. Nem sempre é fácil mas, se fosse fácil não teria a mesma piada!

A Bomboca Mais Gostosa disse...

Realmente dá que pensar!
E não suporto gritos.

redonda disse...

Tomara que não caia mesmo. Gostei deste texto :)

Pipoca dos Saltos Altos disse...

Muito boa a observação. beijos

Ivar C disse...

cafeína, não somos todos assim? eu não sei... :)

a bomboca mais gostosa, nem eu. :)

redonda, obrigado. :)

pipoca dos saltos altos, beijos. :)

Anónimo disse...

Olá, boa tarde. Apenas para dizer que gosto imenso do que vou lendo neste seu blogue. Muito obrigado. Um abraço e bom fim de semana.

Ivar C disse...

José Sousa, agradeço muito a simpatia e a presença. obrigado. :)

dropsofmagic disse...

Gostava de escrever um comentário cheio de graciosidade que não roçasse o "lambe-botismo", mas acho que me vou ficar pelo: epá, adoro a tua escrita!

Ivar C disse...

dropsofmagic, não te preocupes. não tenho botas. agradeço-te a presença e a simpatia. :)

Fatyly disse...

Odeio gritos...e gostei imenso a metáfora do balão.

Ivar C disse...

fatyly, somos parecidos, nesse aspecto. :)

gaivota disse...

O balão também rebenta com excesso de hidrogénio. O difícil é encontrar e manter o equilíbrio. De qualquer modo creio que o amor vale por si, durante o tempo em que valer e independentemente do desfecho.

Estudante disse...

:)...

Ivar C disse...

gaivota, depende... eu cá sempre gostei de voar alto, mesmo que me chamem lírico uma vez por outra. :)

estudante, :)

STAR disse...

Até agora tenho sido uma fiel, mas silenciosa, seguidora deste blog.
Deixei, neste preciso momento, de ser silenciosa tão pura e simplesmente pela forma tão diferente que este post me tocou.
És um excelente escritor que revela ser um ser humano sensível, critico e atento.
Parabens
também eu desejo que o teu balão não caia

Ivar C disse...

star, obrigado. :)

Pedaços disse...

É uma grande verdade e algo que eu não consigo perceber o porquê de acontecer entre pessoas que se gostam tanto, às vezes também se magoam tanto.

Eu também me chateio com os meus irmãos, quando éramos mais novos andávamos até à pancada, mas não deixam nunca de ser meus irmãos e o amor prevalece.
Enquanto que não trato assim os meus amigos, por mais próximo que sejam, não lhes vou levantar a voz.

Falou noutro tipo de amor em que os gritos aparecem, mas acho que acontecem mais ou menos em todas as relações quando as pessoas se sentem à vontade.
Infelizmente, porque o amor não devia ter estes espinhos.

Ivar C disse...

margarida, obrigado. :)

Amanda Campos disse...

"Que o balão não caia."

ler esse texto me deu vontade de te dar um abraço, sério! também sou do tipo de pessoa que tem esses momentos de "ver além", de sentir o que se passa ali e desejar coisas boas a desconhecidos... acho que se as pessoas parassem tanto de correr contra o tempo e dessem mais atenção ao que ocorre ao redor se sentiriam mais nutridas(?) emocionalmente. acho que faz bem pra qualquer um parar pra reparar nas coisas bonitas da vida! :)

Ivar C disse...

Obrigado Amanda campos, um abraço prolongado, então. :)