a crédito
Quando eu era criança, a minha mãe fazia as compras lá para casa essencialmente na mercearia do senhor Orlando, perto do ainda existente café Convívio, em Aveiro. Ia lá praticamente todos os dias, enchia um ou dois sacos reutilizados pela enésima vez e depois pagava no fim do mês. Eu, nos dias em que tinha sorte, trazia um ou dois rebuçados de oferta. Desembrulhava o primeiro, enquanto o via a tirar o lápis detrás da orelha e apontar num caderno a despesa, e guardava o segundo no bolso.
Algumas vezes, enquanto a minha mãe fazia as compras lá dentro, eu ficava cá fora, junto aos caixotes da fruta e dos legumes, a brincar com a filha duma outra cliente que costumava ir lá à mesma hora. Não me lembro do nome dela, mas lembro-me que tinha o cabelo preto e comprido, olhos escuros e soltos como o voo duma borboleta. Costumava arrancar algumas uvas que dividia comigo e, apesar de ter na altura apenas uns seis ou sete anos de idade, foi ela que me ensinou como é que das uvas podíamos fazer passas.
Fascinava-me, aquela miúda. Aliás, como eu não tinha coragem de roubar uma única uva que fosse, foi com ela que comecei a perceber que as mulheres são demasiado corajosas para quem é do sexo fraco, e que os homens são demasiado cobardes para quem é do sexo forte.
O caderno do senhor Orlando seria, aos olhos de qualquer estudante de Economia dos dias de hoje, um produto financeiro de alta rentabilidade. Ali estavam promessas de pagamento da despesa mensal em alimentação de inúmeras famílias aveirenses, ou seja, de muito dinheiro. Esse produto financeiro seria, assim, nos dias que correm, alvo de especulação em bolsa e uma forma de cobrar juros pela demora no pagamento. O senhor Orlando, no entanto, limitava-se a abrir o caderno de vez em quando para informar os clientes em quanto é que ia a conta.
Com o tempo, todas as lojas pequenas como a do senhor Orlando foram substituídas por grandes superfícies comerciais. Simultaneamente, o caderninho onde se apontavam as despesas foi substituído por cartões de crédito. Ao contrário do senhor Orlando, os hipermercados não acreditam na palavra de pessoas como a minha mãe, por isso os bancos passaram a servir de garantia desse pagamento cobrando uma taxa a uns e outros.
Essa taxa chega, diz o grupo Jerónimo Martins, aos cinco milhões de euros por ano, por isso quer acabar com os cartões de crédito (e débito também) para despesas inferiores a vinte euros nos supermercados Pingo Doce. O senhor Orlando não faz ideia do dinheiro que deixou de ganhar por nunca ter cobrado taxa nenhuma aos seus clientes e eu, como não acredito que os supermercados Pingo Doce venham a ter empregados de caixa com um lápis atrás da orelha, nem acredito que uma mulher qualquer simpática venha a roubar uvas para dividir comigo, vou continuar a não ir lá.
Algumas vezes, enquanto a minha mãe fazia as compras lá dentro, eu ficava cá fora, junto aos caixotes da fruta e dos legumes, a brincar com a filha duma outra cliente que costumava ir lá à mesma hora. Não me lembro do nome dela, mas lembro-me que tinha o cabelo preto e comprido, olhos escuros e soltos como o voo duma borboleta. Costumava arrancar algumas uvas que dividia comigo e, apesar de ter na altura apenas uns seis ou sete anos de idade, foi ela que me ensinou como é que das uvas podíamos fazer passas.
Fascinava-me, aquela miúda. Aliás, como eu não tinha coragem de roubar uma única uva que fosse, foi com ela que comecei a perceber que as mulheres são demasiado corajosas para quem é do sexo fraco, e que os homens são demasiado cobardes para quem é do sexo forte.
O caderno do senhor Orlando seria, aos olhos de qualquer estudante de Economia dos dias de hoje, um produto financeiro de alta rentabilidade. Ali estavam promessas de pagamento da despesa mensal em alimentação de inúmeras famílias aveirenses, ou seja, de muito dinheiro. Esse produto financeiro seria, assim, nos dias que correm, alvo de especulação em bolsa e uma forma de cobrar juros pela demora no pagamento. O senhor Orlando, no entanto, limitava-se a abrir o caderno de vez em quando para informar os clientes em quanto é que ia a conta.
Com o tempo, todas as lojas pequenas como a do senhor Orlando foram substituídas por grandes superfícies comerciais. Simultaneamente, o caderninho onde se apontavam as despesas foi substituído por cartões de crédito. Ao contrário do senhor Orlando, os hipermercados não acreditam na palavra de pessoas como a minha mãe, por isso os bancos passaram a servir de garantia desse pagamento cobrando uma taxa a uns e outros.
Essa taxa chega, diz o grupo Jerónimo Martins, aos cinco milhões de euros por ano, por isso quer acabar com os cartões de crédito (e débito também) para despesas inferiores a vinte euros nos supermercados Pingo Doce. O senhor Orlando não faz ideia do dinheiro que deixou de ganhar por nunca ter cobrado taxa nenhuma aos seus clientes e eu, como não acredito que os supermercados Pingo Doce venham a ter empregados de caixa com um lápis atrás da orelha, nem acredito que uma mulher qualquer simpática venha a roubar uvas para dividir comigo, vou continuar a não ir lá.
24 comentários:
A minha mãe ainda hoje faz compras no mercadinho da esquina, onde tem "conta". Também se chama Sr. Orlando e ambém me desagrada não poder usar o cartão quando quero e bem me apetece - é mais seguro, limpo, eficaz; e é honesto. Gente mesquinha não me apraz.
Isto merecia o belo do "like".
Antes era tudo mais simples e mais ingénuo, não era? :) E a forma como o senhor Orlando vendia, facilitava a vida a muita gente...
em relação a uma mulher simpatica que queira dividir uma uva contigo acredito que existirá por ai alguma que terá esse prazer.
quanto aos hipermercados é um mal necessario que foi criado por esta sociedade de consumo, não concordo com aquilo que eles fazem aos produtores, mas enfim tanta coisa que não concordo e que pouco posso fazer para mudar.
continuação de boas ferias.
Não devias dizer que não acreditas! Se quiseres combinamos no Pingo Doce mais próximo. Eu roubo as uvas... mas depois tu pagas em dinheiro vivo!
Bagacito, posso publicar este teu texto no meu blog sério («Persuacção», em http://persuaccao.blogspot.pt/)?
Subscrevo, na perfeição
uma das coisas que ainda me dão orgulho é de morar numa cidade pequena e comprar fiado na quitanda da esquina, onde o dono, o Seu Belchior, me conhece desde menina.
amo ler tudo que escreves aqui, há tempos. obrigada.
xana olsdal, concordo. :)
vita c, obrigado. :)
estudante, ingénuo não sei, simples era. :)
salsa, são um mal, mas não necessário. :)
simplemente... sophia, o meu dinheiro anda um bocado morto, é o único problema. :)
peppy miller, obrigado. :)
priscila vieira, eu é que agradeço. cada vez percebo mais as vantagens de se viver em cidades pequenas. :)
E eu? E eu? Nem um postalinho... nem um telefonemazinho?...
Olha, já somos dois!
Que texto magnífico, adorei :)
oh São Rosas, desculpa. A sério que não vi o comentário. Escapou-me nem sei como. Já sabes que sim, que podes, e eu agradeço. :)
a bomboca mais gostosa, obrigado. :)
Nunca gastei dos produtos do Pingo Doce, mas onde gasto e quase sempre é apenas uma vez por mês porque odeio fazer compras é no Continente e pago com multibanco o que me facilita muito, daí não concordar com tal medida pois "coitadinhos" deveriam era negociar com o Banco, já que essas taxas são diluídas nos produtos.
Também te digo outra razão que deixei os supermercados pequenos daqui e de outros locais: são muito mais caros em tudo e quase sempre 1kg de qualquer coisa é tudo menos 1kg mas 750grs, 800grs...grão a grão enche a galinha o papo, porque hoje são poucos que têm a honestidade de um SR.Orlando e da tua mãe.
Fixe :O)
Já lá mora:
http://persuaccao.blogspot.pt/2012/08/a-credito-bagaco-amarelo.html
Obrigada!
fatyly, raramente os pequenos têm capacidade para concorrer com os grandes, isso é verdade. :)
são rosas, obrigado. :)
Subscrevo e assino por baixo! E eu até ia ao Pingo Doce, tem produtos melhores que o Jumbo, por exemplo. Mas são sempre compras de valor inferior a 20€, por isso acho que vou passar a lá ir bem menos vezes!
Acho que vão perder mais do que ganham, mas enfim... :(
Assino em baixo. Também vou continuar a não ser cliente deles!
mushroom, eu também é raro gastar mais de 20 euros... :)
olga, boa. :)
Gostei muito de ler, aquela tua constatação sobre os sexos, mais forte e mais fraco :)
Eu sou como tu, vou continuar a não ir lá, ao Pingo Doce... Só lá ia ao pão e aos tremoços, de quando em vez. Agora, nem isso.
Mam'Zelle Moustache, azeitonas... isso é que é. quais tremoços?! :)
Bagaço
ter até têm, porque pelo menos os três daqui têm rendas do tempo da outra senhora, não usam multibanco e duplicam e triplicam os preços, sem pensarem que os clientes que ainda vão tendo são os "velhos" e que estes já não suportam os preços que eles praticam. Imagina que um deles compra no Continente e duplica ou triplica o preço e depois queixam-se? Afinal como é? Honestidade ou vigarice?
Não me venham com tangas...porque nem todos têm carro e ou pernas e ou familiares para irem às grandes superficies e fazem muita falta Srs.Orlandos!
Quando vou, já trago as compras que alguns velhotes me pedem e assim conseguem esticar a sua reforma, já que vou onde é mais barato...e tudo, mas tudo linha branca...maisnada!
fatyly, isso é que desconheço... :)
eu também vou. quando vou à minha terra natal também gosto de fazer as compras numa lojinha pequena que ainda existe por lá. é sempre uma viagem tão saborosa, aquele atender =)
memyselfandi, sorte que a tua terra ainda tem disso. :)
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