9.12.2006

a espaços com os dias

Há um cigarro que me fuma há alguns minutos. Há um risco a rasgar o vidro embaciado da cozinha, feito pelo dedo duma mulher que agora entra no automóvel lá fora. Posso vê-la daqui. Há alguma loiça por lavar: dois pratos rasos e pretos, dois copos de vinho, dois garfos, duas facas, uma travessa e uma panela. Um dos copos está quase cheio e o vinho ainda dança dentro dele, tal a violência com que foi pousado. Também se assustou, o copo, e até agora manteve-se em silêncio. Lá fora ela já pôs o motor do carro a trabalhar, já acendeu os médios, já deixou os limpa pára-brisas dizer que não duas vezes, como um dedo indicador zangado, para secar a neblina adormecida no vidro. Dizer que não. Agora arranca.
Há uma rua que já calcorreei descalço quando era criança, que já me viu jogar ao pião e à bola, fazer uma casa com tijolos roubados nas obras do prédio novos e que, entretanto, já envelheceram. Há essa rua, e ela agora pede-me força. Diz-me que o problema não é assim tão grande, e que mesmo o que é grande às vezes não o chega a ser. É só impressão nossa, diz ela, olha para mim. E eu olho. Está molhada e triste.
Há um lugar vago no parque de estacionamento, outro lugar vago em mim. São espaços por ocupar. Só isso. Se calhar somos todos assim: um complexo de espaços que vamos ocupando com os dias e que, quando ficam desocupados, se transformam em pequenas feridas. A minha rua sabe que as pequenas feridas às vezes doem mais. São mais fininhas e cortantes.
Há uma repetição nas noites, e cada uma é o espelho da anterior, sempre com a incerteza de que a noite não se vê ao espelho. Que é escura, sopra-me ela ao ouvido. Ela, a noite, e continua que não se pode ver e que gosta que seja assim. Há uma noite que me diz para entornar a merda do copo de vinho onde a merda do vinho dança, para limpar a merda do traço na merda do vidro embaciado e cuspir-lhe até, se for preciso. Se for preciso, repete. É preciso, grito-lhe. Há uma noite que a minha rua não é de facto grande, e que há mais ruas onde mais crianças jogaram à bola e ao pião, e que há mais ruas com lugares vagos para estacionar. Há mais ruas.
Há uma cerveja que respira em cima do balcão dum bar. Há ao lado dela um banco para me sentar. Um espaço para ocupar, penso. Sento-me. Sento-me, sento-me, sento-me, sinto-me. Sinto-me. Outra cerveja, peço. Há um cheiro a perfume duma loja do chinês e um braço que se encosta ao meu. Há uma mão que agarra a minha, e una cabelos que me orbitam como libelinhas excitadas. Há uma voz que me mente e que eu quero que minta. Se calhar somos só isso: uma mentira com espaços, muitos, para ocupar. Para preencher.
Há tremoços e amendoins, diz a empregada. Que não, respondo-lhe. Muito obrigado. Mais uma, não, duas cervejas.

também publicado no bagaço amarelo

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