4.15.2013

pensamentos catatónicos (292)


a cebola faz chorar

Anabela não sabia morrer. Às vezes pensava nisso e chegava sempre à conclusão que era bom a morte ser inevitável, caso contrário nunca conseguiria pôr termo à vida. Se não sabia morrer, muito menos sabia matar-se. A sua morte chegaria um dia, portanto, da mesma forma que outra coisa qualquer. Picar cebolas, por exemplo. Anabela não sabia picar cebolas, mas fazia-o sempre que decidia cozinhar um refogado.
Lembra-se de, em criança, ver a mãe de barriga encostada à banca da cozinha a picar cebolas, com um avental branco que tinha o desenho duma árvore. Era incrível como, apenas com uma simples faca, a cebola ficava tão bem picada. Aliás, às vezes parecia que aqueles bocadinhos pequenos de cebola eram todos iguais e, por isso, esculpidos à medida. A mãe era, de facto, uma artista na cozinha, e depois chorava sempre um bocadinho.

- A cebola faz chorar! - dizia então.

Anabela também chora quando tenta picar cebolas da mesma maneira. Só não tem a certeza que seja por causa delas. Aqui há uns dias passou a tarde a sentir-se sozinha, depois de um almoço silencioso com o namorado. Nunca chorou, apesar da tristeza, até chegar o momento de picar cebolas para o jantar. Ao fazê-lo, os seus olhos transformaram-se em cascatas. O namorado passou por trás sem dizer nada (ainda não tinham trocado palavra nesse dia), mas ela sentiu-se na necessidade de se justificar.

- A cebola faz chorar! - disse.

Ao almoço, ela tinha posto em cima da mesa uma panela de massa com tomate e carne estufada. O namorado sentou-se e não a cumprimentou. Também não comeu nada do que lá estava. Limitou-se a ir ao frigorífico buscar um pouco de pão e queijo levou para o sofá e devorou enquanto via televisão.
Ela levantou-se em silêncio, arrumou o prato e os talheres dele na gaveta da cozinha. Depois guardou as sobras no frigorífico e foi para a janela ver se o mundo lá fora ainda estava vivo. Estava, ou pelo menos parecia. Dois pardais disputavam um pedaço de pão no passeio e uma mulher passeava um cão do outro lado da rua. Era só ali dentro de casa dela que as coisas pareciam ter parado de repente. Durante o resto da tarde, como já disse, não chorou.
Não chorou, mas chegou a uma conclusão. Os momentos mais importantes da vida não são aqueles em que os outros nos dão importância. São sim, aqueles em que decidimos alguma coisa. Por exemplo, decidir ter um cão, ir passear à praia, comer um chocolate ou sorrir a um desconhecido na rua são momentos importantes. São eles que definem a nossa vida no tempo seguinte. Da mesma forma, decidir cortar cebola para poder chorar à vontade, também é uma decisão importante.
Desta forma, a decisão que tinha tomado de namorar com aquele homem, tinha feito com o que o tempo seguinte tivesse este dia incluído, com um silêncio tão imperceptível quanto incomodativo. Bastaria, num momento qualquer, decidir não namorar mais com ele e tudo mudaria.
Por hoje, Anabela decidiu apenas abraçar-se a si mesma, e nesse abraço tentar agarrar o vento que corre interminavelmente pelas ruas da cidade. Decidiu sentir-se feliz por poder optar por brincadeiras improvisadas nessa dança solitária, como pisar apenas os riscos brancos nas passadeiras quando as atravessa, chutar pedrinhas brancas em direcção aos buracos de esgoto como se quisesse marcar um golo ou, depois mais à noite, picar cebola para chorar à vontade. E, claro, dizer que a cebola faz chorar.

20 comentários:

Brisa disse...

:) Lindo. Ainda não me ocorrera pensar nas coisas dessa perspectiva. Faz sentido.

Ivar C disse...

brisa, :)

Anónimo disse...

Leio-te há uns tempos, sempre com vontade - gosto mesmo do que escreves.
Não sou muito de comentar, mas hoje o teu texto tocou-me especialmente. Estava a precisar de ler qualquer coisa assim para mudar a perspectiva. Às vezes as coisas mais simples passam despercebidas...
Obrigada :)
Beijos!

Anónimo disse...

Foi por "pequenas" situações destas todos os dias e a toda a hora, que ao fim de uns tempos se tornam "grandes" situações, que o meu "foi às couves"!!!

Anónimo disse...

Gostei tanto! São de facto assim, as nossas decisões. :)

gaivota disse...

Obrigada! Era isto mesmo que estava a precisar de ler hoje.

Um abraço.

Ivar C disse...

blackwidow, obrigado. :)

anónimo, é o processo normal, acho eu. :)

Ana B, ou deviam ser... :)

Lita, eu é que agradeço. :)

Anónimo disse...

Hmm, mas vale decidir que é melhor mudar de ares, de homem, de hobbies...
EJSantos

Anónimo disse...

Grande texto! Mto fixe!

"Os momentos mais importantes da vida não são aqueles em que os outros nos dão importância. São sim, aqueles em que decidimos alguma coisa."

Penso bastante nisto! A nossa capacidade de decisão e a(s) da(s) outra(s) pessoa(s) são muito daquilo que nos define.


Pedro

Ivar C disse...

ejsantos, era bom que a vida fosse simples. :)

pedro, obrigado. :)

Freak Perfum disse...

"Anabela não sabia morrer." Foi sobretudo esse pensamento inicial que mais me impressionou. Ainda bem que a Anabela não é a unica que não sabe morrer, caso contrário, como decisão consciente, seria esse o último momento importante da vida de muitas pessoas. Gostei imenso. Parabéns pelo blog :)

Ivar C disse...

freak perfum, obrigado. :)

Anónimo disse...

"ejsantos, era bom que a vida fosse simples. :)"

Ai, ai. Na mouche, grande IVAR!
Quem me dera que a vida fosse assim. Mas pelo menos não preciso de cebolas para chorar...
EJSantos

Ivar C disse...

ejsantos, quem me dera também... :)

Fatyly disse...

Para mim o suicídio é assustador e pantomineiros(as) é o que há mais por aí e há que saber dar a volta porque na vida o que tem mais sabor são as pequenas vitórias que conquistamos por vezes vindas do nada.

Noutro contexto...e nos tempos actuais "as cebolas já não fazem chorar"...aconchegam sim o estômago de muitos(as).



ADOREI!

Ivar C disse...

fatyly, é assustador, sim... :)

Anónimo disse...

Ler isto e logo hoje .... Chorei sem precisar de descascar cebolas. Lindo!!

Ivar C disse...

anónimo, obrigado. :)

sophie disse...


Fiquei a pensar...

Por hoje, decidi apenas abraçar-me a mim mesma, e nesse abraço tentar agarrar o vento que corre interminavelmente pelas ruas da cidade...

(desculpa o plágio)


Ivar C disse...

sophie, obrigado. :)