respostas a perguntas inexistentes (246)
Às vezes vou a casa duma amiga minha beber uma caneca de chá. Digo-o assim porque, por mais tempo que passe, é sempre para um chá que ela me convida. Seja de manhã, à tarde ou à noite, telefona-me de vez em quando e pergunta-me se quero ir beber chá. Admito que, não sendo um grande adepto dessa bebida, gosto muito do que ela faz e bebo-a com uma dose acrescentada de prazer. Não sei como é que ela faz, mas sei que para além de mergulhar a saqueta com uma planta qualquer na água a ferver, acrescenta ainda mais alguns ingredientes. Canela é um deles.
Há uns tempos, por qualquer motivo, acabou o assunto entre nós assim que ela me deu uma segunda caneca para beber. Eu tinha acabado de lhe dizer que gostava muito do chá dela, especialmente em noites frias como aquela, e ela tinha-me perguntado se eu queria aprender como é que se fazia.
- Não. - Respondi.
Não se sentiu ofendida. Calou-se, tal como eu, e encostou-se para trás no grande sofá da sala. Fez-se silêncio. Bebi todo aquele líquido saboroso em pequenos e delicados goles, para não fazer barulho. Não sei quanto tempo demorei, mas talvez uns quinze ou vinte minutos. O que eu sei é que foram quinze ou vinte minutos de tranquilidade total. Conseguia ouvir o respirar dela e, penso eu, o meu próprio bater do coração.
Depois, quando a caneca chegou ao fim, lá lhe expliquei porque é que não queria aprender a fazer o chá.
- Mesmo que me ensinasses a fazer este chá e mesmo que o conseguisse fazer da mesma forma, nunca ia ser igual. Já me habituei a bebê-lo aqui na tua casa, e é a estes momentos que eu associo este sabor e este conforto.
Ela sorriu. Percebeu, ou fingiu perceber, o que eu lhe tinha dito. Despedi-me e saí passado pouco tempo. No caminho para casa, de mãos nos bolsos e o casaco apertado até ao queixo para me proteger do frio, fui a pensar em como é confortável ter momentos destes. Pensei que nunca na vida conseguiria explicar a alguém a sua importância, até porque dizer que um dos momentos especiais que se tem na vida é quando se vai beber chá a casa duma amiga, pode parecer bizarro.
Foi nessa noite que decidi voltar a brincar com sons e experimentar fazer umas músicas. Estive até às quatro ou cinco da manhã a trabalhar e, assim que acabei, encontrei a minha amiga online no facebook. Mandei-lhe o mp3 por email e perguntei-lhe se ela conseguia ouvir tudo até ao fim.
Esperei uns minutos. Os cinco minutos e três segundos que a música tem e mais um bocado, sempre a olhar para o espaço em branco onde as letras escritas por ela apareceriam supostamente em qualquer altura. Era como se estivesse a olhar para o futuro e ele não quisesse ser presente.
Depois, por fim, ouvi o sinal de que tinha mensagem nova no facebook.
- É esquisita! - escreveu. - mas eu gostava de saber fazer músicas assim.
- Queres que eu te ensine a trabalhar com o software? - Perguntei.
- Não.
Não me explicou porquê.
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21 comentários:
Gostei imenso do texto, só que romântica que sou, estava à espera de outro final.
Apesar de estranha como a tua amiga, disse. Gostei bastante. Fizeste tudo por software?
Adorei o underground, quanto ao não querer aprender certas coisas pode ser reflexo de preferir viver sem saber tudo ao pormenor, parece-me bem, ou pode ser apenas desinteresse...
:)
realmente há coisas que nunca queremos saber fazer, porque nunca as conseguiriamos fazer da mesma forma..... sem duvida
acho que ela percebeu....
foi um elogio....e b onito
beijinhos
tatis, não vejas a coisa como um final. :)
y2000k, tudo por software, sim. Não tenho outra maneira... :)
o olhar do lobo, é mais ter um lugar para certas coisas, acho eu. :)
quase nos "entas", obrigado. beijinhos. :)
E mesmo que saibamos fazer, é tão bom fazer de conta que não sabemos...
Ana B., às vezes é. :)
Tão melhor termos coisas boas feitas por amigos! Tão mais reconfortante do que fazê-las sozinhos!! :)
Há coisas que não se explicam...sentem-se apenas o que as torna ainda mais reconfortantes.
Comecei a ver o video e depois de visualizar os monos de alta tensão fechei os olhos e sabes o que senti?
Os ecos da minha terra quando alguns do meu grupo tocavam e cantavam em surdina "músicas suas no seu kimbundo" e os teus sons de fundo pareceram-me das suas ocarinas, marimbas e berimbaus artesanais.
Podes rir...porque "a bota não dá com a perdigota" mas foi uma sensação tão, mas tão agrádavel e gostosa que nem imaginas.
Olha que nem vejo as teclas...e desculpa se distorci por completo o teu trabalho!
Nem precisa :p
Gostei muito do relato.
Mas sabes tocar algum instrumento? Já agora que software é que usaste?
Não era preciso, já tinha sido explicado antes. :)
Esta história fez-me lembrar o desespero de uma pessoa que conheci quando perdeu a mãe. No meio de tanta dor ela estava preocupada com o facto de não ter pedido a receita de um frango que só a mãe sabia fazer e durante anos assisti à tentativa dela de recriar esse prato. Era como se acreditasse que essa receita mágica traria a mãe de volta.
Há sempre coisas que só nos saberão bem num determinado contexto.
A história, é como sempre, sublime! Já a música...
Bjs
S.
malena, sim... e nem é poruma questão de preguiça. :)
fatyly, por acaso a bota bate com a perdigota, sim. uso aqui sons africanos, embora ninguém os possa reconhecer. obrigado. :)
carolina duarte, obrigado. :)
y200k, não sei... desde puto que faço estas coisas sem saber música. tive sempre bandas de colagens de sons, mesmo antes de haver computadores. Agricultor Debaixo do tractor, Astrólogo Perneta, Cuecas Rosa Ao Poder, etc... uso o fruty loops e o sound forge. :)
olga, obrigado. é interessante. :)
laura asantos, é isso. :)
S, lol. obrigado. :)
Vir a este blog é como comer uma fatia de salame. Só ás vezes. Mas é um ritual doce e que me apraz cada vez mais.
Neste momento, a musica vai no minuto 1. A minha definição é: "primeiro estranha-se mas depois entranha-se." :)
Achei curioso o facto de ter escolhido imagens de gruas e postes de alta tensão para o video. É que eu, fechando os olhos, consigo sentir neste mucica, o cantar das gentes da serra a trabalhar as terras e a tratar o gado. O alarido das varinas na praia à espera que os barcos regressem e que se começem a puxar as redes. Os miudos na rua a brincar à cabra cega.
... mas se calhar eu sinto isto porque conheço bem Aveiro (o distrito e não apenas a cidade) :)
Gostei do texto e gostei muito da sonoridade. Parabéns!
Carla (Natural de Vale de Cambra, residente em Sever do Vouga e a trabalhar em Oliveira de Azeméis)
Porque razão temos que ter sempre uma razão para justificar tudo? E como o próprio diz, a históriaa não acabou, apenas aquele momento...
E sejamos francos, sabe muito bem um chá com uma amiga, sem nada de mais entenda-se, apenas saborear uma amizade.
mariac, obrigado. :)
Carla (Natural de Vale de Cambra, residente em Sever do Vouga e a trabalhar em Oliveira de Azeméis), também conheço bem o distrito. pode ser isso. :)
joão de matos, não temos, de facto. :)
Delicioso!
florinha, obrigado. :)
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