2.14.2019

A memória é uma nuvem

A memória é uma nuvem. Sei o que digo por causa dos últimos três anos da minha vida, que se condensaram numa forma indefinida no céu. É como se às vezes olhasse para o meu passado da mesma forma que olho para o céu num dia qualquer. Sei que está tudo ali, mas sou incapaz de distinguir seja o que for.
Nessa nuvem sei que estão os dois países onde vivi. Sei que estão dois ou três empregos, algumas histórias improváveis, dias difíceis de solidão e de saudade, novos amigos e um Amor. Só um, como devem ser os Amores. No entanto, faltam-me normalmente os momentos. Quero lembrar-me de um beijo, de uma mão dada, de uma lágrima ou de um sorriso e não consigo. Cada dia da minha vida é apenas uma partícula de água suspensa entre tantas outras que, assim de longe, parecem todas iguais.
E foi assim que aprendi uma coisa nova. Não é importante lembrarmo-nos constantemente e ao detalhe de cada acaso importante da nossa vida. Quando precisamos, esses momentos vêm ter connosco. Desprendem-se do céu e chovem sobre nós. É bom.
Ao meu lado,  num velho pub inglês, um homem sem dentes ri-se sozinho enquanto bebe lentamente mais uma pint duma cerveja cuja marca desconheço. É um riso que me é familiar, essencialmente porque contém um choro escondido. Já me ri assim, a engolir a tristeza e a cuspir sabe-se lá o quê. Uma das vezes que o fiz estava num bar em Sófia e não me queria apaixonar. Fui bebendo, como se a bebida pudesse fazer alguma coisa por mim. Depois assumi a derrota e levantei-me, deixei algum dinheiro em cima da mesa e saí para a rua disposto ao que fosse. Eventualmente até a gostar de alguém outra vez.
Na noite anterior a S tinha-me tocado com os dedos dos pés dela nos meus, no meu corpo quase tão cansado como a minha solidão. E então veio a voz dela tapar-me como se fosse um lençol usado. Disse-me que estava tudo bem, mesmo que eu não quisesse voltar. Se o quisesse, melhor.
As ruas da capital búlgara mastigavam lentamente a luz do fim da tarde. As pessoas pareciam caminhar com pressa mas sem destino e os velhos eléctricos do tempo do comunismo transportavam-nas sem razão aparente. Então entrei num deles, cheio de passageiros embrulhados em silêncio e de mais um homem a rir-se para não chorar.
Voltei nesse instante.

8 comentários:

RPM disse...

Olha quem está de volta. ♥

Luciana Nepomuceno disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luciana Nepomuceno disse...

tem certeza que você não sou eu? depois do silêncio este texto que sintetiza tanto do meu sentir (até os dois países e tal). Me tocou muito.

Maria Mary disse...

gostei que tivesse voltado!
um abraço

João Santana Pinto disse...

Gostei do texto, as memórias são de facto nuvens, aparecem e desaparecem sem controlo, muitas das vezes, sem controlo possível. Somos o que somos, humanos, com as nossas valências e debilidades, por vezes mostramos força quando não a temos.
Gostei.

Ivar C disse...

RPM, nunca saí daqui. Apenas me calei.

Luciana Nepomuceno, Vou tendo. Obrigado.

Maria Mary, obrigado.

Sam Seaborn, obrigado.

RPM disse...

Era da tua voz que tinha saudades, então.

Ivar C disse...

RPM, :)