10.07.2013

coisas que fascinam (163)

As árvores despem-se no Outono, disse ela. Eu confirmei, abanando a cabeça afirmativamente, enquanto aquecia os dedos das mãos na chávena de chá escaldada. Lá fora, como se estivéssemos perante uma pintura viva, as folhas mortas avermelhadas pontilhavam a cidade cinzenta. Lembro-me de acompanhar, com o olhar, um pássaro assustado que batia freneticamente as asas em direcção a lugar nenhum. Acabou por ser refugiar na beira duma janela triste, que muito provavelmente deixara de apreciar as vistas havia muitos anos. Estava fechada, tão fechada como os olhos de alguém que dorme um sono eterno.

A Marta era a companhia ideal para as minhas tardes de silêncio. Tinha sempre qualquer coisa para dizer e não se importava que eu não lhe respondesse. Falava sobre tudo e era capaz de mudar de assunto várias vezes por minuto. Normalmente eu limitava-me a ouvi-la. Lembro-me que gostava de o fazer porque também gostava de a ver sorrir, o que ela fazia constantemente. De resto, ela tinha uma habilidade muito especial para... para qualquer coisa importante que nunca percebi o que era.

- É estranho as árvores despirem-se no Outono! - insistiu ela.
- Porquê?
- Porque está frio. No Inverno deviam vestir-se com um casaco quentinho de folhas. Talvez fosse melhor despirem-se no Verão.
- As árvores não sentem frio nem calor... - respondi.

Ela desfez o sorriso enquanto eu verificava se o chá já tinha a cor pretendida, mergulhando o saco com as ervas várias vezes seguidas no caldo de água quente. Pelo canto do olho, percebi que ela estava desiludida com alguma coisa, mas não fazia ideia do que era.

- O que é que foi? - Arrisquei.
- Quando eu estiver a conversar contigo e te disser uma inverdade, por favor, leva-me a sério. Para seres meu amigo tens que acreditar que eu acho que as árvores têm frio. Está bem?

Tornei a abanar a cabeça afirmativamente. Foi aquela a única vez que a Marta me chamou a atenção numa conversa e mostrou desagrado pela minha resposta. Percebi, nesse dia, que mesmo numa conversa de pacotilha como aquela era importante estarmos os dois ao mesmo nível. A minha observação, embora coerente, tinha cortado a conversa pela raiz. 

- Desculpa. - pedi.

Hoje fui dar uma volta aqui pela zona onde vivo, em Aveiro, que não é propriamente a zona mais bonita da cidade. Sentei-me numa paragem de autocarro e ao meu lado sentou-se uma mulher com a filha, uma miúda com uns cinco ou seis anos de idade. Uma árvore nua contemplava-nos num silêncio sepulcral e a criança perguntou à mãe se ela não tinha frio.
Há muitos anos que não vejo a Marta. Sei que ela foi viver para o estrangeiro há muitos anos e perdi-lhe o rasto. Hoje, no entanto, percebi qual era a habilidade dela de que eu sinto falta. Ser criança. Não pelos gestos infantis, nem sequer por alguma ingenuidade inerente, mas sim pela capacidade que tinha de humanizar tudo o que via. Incluindo eu.

9 comentários:

nos"entas!!!! ( e feliz) disse...

Pois..vamos perdendo aos poucos essa "amabilidade" quase infantil....a ingenuidade...de dar sem olhar a quem...
É pena, se bem que ainda assim me acho tão ingénua em tantas coisas... ( ou burrinha) ;)

Fatyly disse...

Tal e qual e revi-me no texto...para quê complicar tudo e todos quando todos temos a capacidade de suavizar e ver a vida com o olhar e sentir de Marta?

A D O R E I!!!!!

Estás melhor? Oxalá que sim e...pera...ATCHIMMMMMMMMMMMMM:)

S disse...

<3 <3
Bjs

Ivar C disse...

nos"entas!!!! ( e feliz), não acredito nada nesse burrinha. :)

fatyly, obrigado. estou melhor, sim. :)

mammy, :)

Unknown disse...

Eu sou assim e muitas vezes me perguntam se não quero crescer... eu sou crescida, mas a gente crescida aborrece-me pela desumanização por isso recrio-me em momentos desses.

nos"entas!!!! ( e feliz) disse...

:)
loolll
Bagaço...eu sou uma pessoa racional, até demais por vezes, mas a ainda ingenuidade que me resta, por vezes leva-me a esconder a razão atrás da emoção....
é por aí...
beijinho

Ivar C disse...

Eva Maria, boa. :)

nos"entas!!!! ( e feliz), por aí também vou. :)

Anónimo disse...

Geralmente pões-me lágrimas nos olhos, hoje puseste-me um sorriso nos lábios... :)

Ivar C disse...

anónimo, ainda bem. :)