páginas de silêncio
Páginas
de silêncio
Página
por página, talvez alguém tenha tido um sonho estranho durante a
noite, com cadáveres semeando flores em extensões de campos
estéreis. Ao acordar, Helena sentiu-lhes o aroma que rareava
serpenteando as artérias da cidade, e saiu da cama mais depressa do
que o habitual. Costuma ficar entre os lençóis com o sossego que
foge das ruas e se vem deitar na cama dela. Normalmente nem fazem
amor, ficam só a olhar para o débil e silencioso baile dos
cortinados de pano branco sujo. É áspera a luz lá fora, vai
pensando suavemente, e o silêncio concorda. Agora que se levantou
precipitada, vê-se ao espelho ainda nua e consegue achar-se um
bocadinho bonita, apesar do ar cansado e envelhecido. Talvez depois
de ir ao psiquiatra passe numa loja e compre um frasco de tinta para
o cabelo. Talvez isso a possa fazer feliz, pensa. O silêncio
concorda de novo e conforta-a, diz-lhe que o sonho não passou disso
mesmo: um sonho. Helena gosta de ir ao psiquiatra por dois motivos:
porque pode reinventar os seus sonhos e porque pode nada dizer. Às
vezes sabe bem estar com alguém a quem se pode nada dizer.
Página
por página, um homem com sotaque do leste folheia em voz alta os
últimos dias da sua vida, numa avenida desatenta, mas as suas
palavras vão fraquejando entre os olhares flutuantes e ombros
embrutecidos que passam. Sente-se um barco à deriva, o homem, e
procura um farol algures entre a multidão. Diz que tem trabalhado
para um construtor civil qualquer que não lhe paga, que tem filhos à
espera numa garagem dum bairro da cidade que sopra, que implora mais
alguns dias de vida. Que tem fome. Depois desiste. Deita-se embalado
pela sombra duma árvore da avenida. Helena passa por ele sem reparar
na sua mão ainda aberta.
As
árvores sabem que ele decidiu morrer atirando-se à ria e que, mesmo
assim, vai tomar um café com açúcar. Sabem que ele apertará os
atacadores dos sapatos várias vezes, até sentir que os mesmos estão
justos aos pés. Nem demasiado apertados nem demasiado largos.
Depois, penteará ainda o seu reflexo na abundante montra duma
pastelaria da cidade. As
árvores sabem que ele agirá assim em silêncio, e estenderam
um tapete vermelho e outonal que ele vai percorrer devagar, fascinado
pela luz que se alonga ao horizonte. Desviar-se-á dum automóvel que
não respeitou uma passadeira para peões, antes de esperar, junto à
ria, que um autocarro pare e despeje uma dezena de pessoas
silenciosas. As árvores sabem que agirá assim para não morrer
antes de se matar.
Helena
está na sala de espera. Ainda não decidiu de que cor vai pintar o
cabelo quando sair dali, talvez porque assim possa continuar a ocupar
o espírito com essa preocupação mínima. Não lhe apetecia nada
chorar outra vez quando começar a contar os seus dias ao psiquiatra,
página por página. Página por página vai lendo, de trás para a
frente, uma revista que tirou à sorte dum monte. São só caras,
pensa ela, caras empacotadas em fatos e vestidos caros, caras
rotuladas por sorrisos torpes, caras sem mais nada. Só caras. Pousa
a revista numa das cadeiras vazias ao seu lado. Há várias cadeiras
assim e lembra-se de como cresceu dividindo um quarto com mais uma
cama vazia. A mãe dizia-lhe que era para quando a família
aumentasse, o que nunca
chegou a acontecer. Nunca teve ninguém ao seu lado, pensa. Por isso
viveu sempre em silêncio. Reprime um esgar de choro.
Vermelho,
vai pintar o cabelo de vermelho. Sorri.
Uma
morrinha parece segredar qualquer coisa à cidade. Helena nunca
desvenda esse segredo, mas tenta encontrar nele qualquer coisa de
bom. Às vezes consegue, numa criança que se estica no balcão duma
pastelaria para escolher um bolo, num automóvel que pára para
deixar atravessar peões que nem sequer estão numa passadeira, num
guarda-chuva que se esforça em vão por abrigar mais do que uma
pessoa. Às vezes noutra coisa qualquer. Quando consegue agarra esse
momento e guarda-o bem na memória, explica ao psiquiatra, que lhe
pergunta se ela se sente mais optimista ou pessimista do que na
consulta anterior. Pessimismo? Optimismo? Não sabe o que é, diz
ela. As coisas são o que são, vai-se vivendo página por página.
Depois emudece durante cinco, dez, talvez quinze minutos. Levanta-se,
despede-se e sai. Hoje não chorou.
Há
páginas que são um erro e se devem rasgar, há outras que se rasgam
sozinhas, mesmo quando não queremos. Helena caminha compreendendo o
seu silêncio amante, mas sorri-lhe distanciando-se. Que não quer
pensar nisso. Um grupo de pessoas agita-se junto a um dos canais da
ria que, como sangue, percorre a cidade transportando algum oxigénio.
O corpo dum homem oscila ali entre as mãos de dois médicos do INEM,
e começa a expulsar alguma água suja pela boca. Já mexe, diz
alguém. Que é ucraniano, conclui outro alguém. Que rasgue depressa
da sua vida a página do dia de hoje, deseja Helena. Depois sorri.
Vai pintar o cabelo de vermelho, como o vermelho das folhas que
despiram as árvores. As árvores estão nuas mas conseguem achar-se
bonitas, conclui. Em silêncio.
7 comentários:
Comovente!
Abraço apertado! Hoje apetece-me abraçar-te! :)
malena, um abraço apertado. :)
Comovente e desculpa, mas fiquei como Malena...
um xicoração muito apertado, verdadeiro e sincero!
fatyly, obrigado. :)
dolce, :)
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