9.14.2016

as fracas luzes da cidade indicar-me-ão o caminho

Os candeeiros públicos parecem ter frio. É a sensação que tenho quando reparo na forma como a luz de cada um se encolhe na escuridão da noite. Não iluminam quase nada, mas fazem-se notar como se fossem pequenos pirilampos envergonhados. É por isso que tenho a sensação de estar numa cidade fantasma, onde as pessoas já se foram deitar e fiquei apenas eu, sentado numa paragem de autocarro a tentar perceber como se movem as sombras.
Entre mim e a Lua há dois números vermelhos a desafiar a noite. Um nove e um doze. Faltam doze minutos para o autocarro da linha nove chegar. É isso. Não é a linha que me pode levar ao pequeno e velho rés do chão onde vivo, mas optei por passar na casa duma mulher que não está na cidade.
É claro que, se não está, não a vou poder ver. Ainda assim, conto que a viagem me traga uma certa normalidade. É um trajecto que já fiz várias vezes a esta hora para ir ter com ela, por isso optei por fazê-lo mais uma vez. Distraio-me sempre com as luzes enfraquecidas e pergunto-me o que é que estão ali a fazer. Às vezes lembro-me da cidade de Londres num tempo em que eu não vivi, e de funcionários municipais a acenderem todas as noites os candeeiros a petróleo que iluminaram, por exemplo, os crimes de Jack O Estripador. Talvez os tenha visto num filme qualquer e nunca mais me esqueci.
Uma das sombras da cidade senta-se ao meu lado. Também está só e, mesmo que não a possa ver, percebo que é duma mulher que aperta as golas do casaco numa vã tentativa de se aquecer. Sentou-se exageradamente perto de mim e posso ouvi-la respirar. Talvez tenha medo de estar sozinha e partiu do princípio que eu, por estar à espera de um autocarro, não seja alguém perigoso como foi Jack. Procura, também ela, alguma normalidade. Gostava de lhe perguntar se alguma vez viu um filme em que homens acendem candeeiros a petróleo nas ruas de Londres, mas seria tão bizarro que não o faço.
Para ela, também eu sou apenas uma sombra. Talvez por isso me pergunte agora qualquer coisa que eu não consigo entender. Não falo búlgaro, digo-lhe. Ela cala-se. Provavelmente só queria ouvir a minha voz. Eu, pelo menos, fiquei contente por ouvir a dela.
Tenho a certeza que é bonita. Imagino-a magra, com a pele exageradamente branca e o nariz de cerâmica a ameaçar  partir-se. Os lábios marcados pelo frio e alguns sinais no queixo. Talvez tenha o cabelo pintado de ruivo e olhos pretos. 
O som característico do autocarro ouve-se no fundo da noite. Os faróis aproximam-se devagar como se fossem de um animal qualquer que, de tão cansado que está, pára mesmo à nossa frente respirando de forma sôfrega. Vem vazio.
Olho uma última vez para a Lua. Tenho a certeza que esteve a ler os meus pensamentos. A mulher senta-se duas filas à minha frente e vira-se durante dois segundos para me ver. Não é nada do que eu imaginei. Muito provavelmente eu também não sou nada do que ela imaginou.
Encosto a cabeça ao vidro da janela como se quisesse ouvir algum segredo vindo lá de fora. Daqui a nada saio num bairro dos subúrbios, olho para as janelas fechadas de um apartamento que pertence a uma mulher que não está e depois faço cerca de três quilómetros a pé até minha casa. As fracas luzes da cidade indicar-me-ão o caminho. Não era preciso, mas é esta a minha normalidade.

2 comentários:

AMarguinha disse...

consigo entender...o que é normalidade? Sou estranha, normal parece-me muitas vezes anormal.

Ivar C disse...

marguinha, é isso. :)