2.29.2016

conversa 2191

Ela - Detesto quando um homem me diz que eu sou muito bonita.
Eu - Porquê?
Ela - Porque isso é conversa para boi dormir...
Eu - Ah!
Ela - Tu nunca me disseste que eu sou bonita, por exemplo.
Eu - Se calhar não...
Ela - Mas porquê?
Eu - Esse está longe de ser o maior elogio que te posso fazer.
Ela - Hum... hum...
Eu - O que foi?
Ela - Nem sei se considere isso bom ou mau.
Eu -  Ainda bem que não gostas que os homens te digam que és bonita, então. Senão consideravas mau de certeza.
Ela - Pois... mas achas-me bonita ou não?
Eu - Agora não posso dizer.
Ela - Porquê?
Eu - Estou condicionado pelas circunstâncias desta conversa.
Ela - Na boa... também não me interessa.
Eu - Ainda bem.
Ela - Mas amanhã já podes dizer, não já?

2.26.2016

conversa 2190

Ela - Este fim de semana nem ponho um pé fora de casa. Vou ficar sentada no sofá, enrolada num cobertor, a ler o meu livro de cabeceira...
Eu - Qual é o teu livro de cabeceira?
Ela - Bem... não tenho. Vou só ficar no sofá, enrolada num cobertor.
Eu - Sem fazer nada?
Ela - Pois... nestes dias de mau tempo é que eu gostava de ter um namorado...
Eu - Só nestes dias de mau tempo?
Ela - Claro. Quem é que precisa de um namorado quando está bom tempo? Eu não... também preciso de me divertir...
Eu - Não te divertes com um namorado se estiver bom tempo?
Ela - Não. Quando está bom tempo os homens tornam-se chatos e só sabem fazer perguntas às quais não me apetece responder, tal como tu estás a fazer agora neste momento.

coisas que fascinam (206)

Na literatura e nas canções sobre o Amor desprezamos a vida. Aquela de todos os dias, em que fazemos compras para o jantar, pomos gasolina no carro, pagamos a conta do gás e sentamo-nos derrotados no sofá da sala a ver um programa estúpido na televisão.
Talvez não saibamos do que falamos quando falamos de Amor e por isso só nos venha à cabeça estrelas brilhantes no céu, paisagens exuberantes, o luar no seu máximo expoente e emoções vivas e extremadas.
Temos tendência a imaginar o Amor num mundo que não existe para além do nosso desejo e da nossa imaginação. Às vezes, talvez por isso, temos até dificuldade em encaixá-lo no nosso. É verdade que se falamos de Amor numa praia deserta e no calor da noite, tendo por testemunha apenas a luz da Lua, podemos acabar num abraço e num beijo doces. É legítimo e sabe bem. Mas o beijo e o abraço mais importantes são aqueles que surgem ao fim da tarde e nos fazem acreditar que, apesar do dia de merda que tivemos, vale a pena viver.
Ninguém deve Amar ninguém apenas por necessidade, mas se o Amor serve para alguma coisa, digo eu que é capaz de ser para isso.
Se eu tivesse o direito de sugerir alguma coisa a todos os Amantes do mundo, sugeria que não se Amassem apenas quando estão de férias numa ilha paradisíaca, mas também e principalmente encalhados na fila do trânsito.

2.25.2016

pensamentos catatónicos (345)

o voo dum albatroz

Acho que é a recordação mais antiga que tenho de suspirar de Amor por uma mulher. A Joana usava tranças e tinha um vestido azul, eu tinha uma fisga de madeira feita pelo meu avô e um estojo com vinte e quatro canetas Molin de cor em cima da carteira da escola. A professora mandara-nos ilustrar um texto e ela virou-se para trás, na minha direcção, e perguntou-me se podia usar o meu amarelo. Corei, talvez demais, e emprestei-lhe todos os seis amarelos que tinha no estojo, do mais claro ao mais escuro e um muito específico a que chamávamos amarelo torrado.
O meu desenho era composto por várias casas, uma cobra, uma girafa, alguns automóveis e crianças a jogar à bola. Usei todas as cores para o pintar menos esses amarelos, apenas pela falta de coragem de lhos pedir de volta. Acho, por isso, que é também a recordação mais antiga que tenho de uma mulher me achar parvo.
No fim do dia, às seis e um quarto da tarde, a campainha tocou e ela devolveu-me as seis canetas. Agradeceu-me e deu-me um beijo na bochecha. Saí a correr pela sala e só parei quando cheguei a casa ainda eufórico. Não sei explicar porquê, mas creio que foi por causa do sonho. Todas as noites antes dessa eu sonhara com a Joana. Continuei a fazê-lo nas noites que se seguiram. Infelizmente, os pais dela compraram-lhe um estojo com trinta e seis canetas e ela nunca mais precisou de mim.
Mais tarde, já adulto e com mais paixões sofridas, em que entretanto o sexo também se metera como um intruso embriagado, percebi-me nessa infância. O Amor que sentimos não é aquele com que nos deitamos, mas sim aquele com que acordamos. Depois do sonho, quero eu dizer.
Os dias bons e os dias maus são sempre um estímulo para nos sentirmos apaixonados, nem que seja de forma tão efémera como o voo duma borboleta tonta. Ou porque queremos aproveitar os bons ou porque precisamos desesperadamente de atenuar os maus. Já o Amor que sentimos ao acordar, depois de ter tido a oportunidade de sonhar, é aquele que pode transformar um voo de borboleta num voo de albatroz. Mais longo, mais decidido, mais forte.
Foi na primeira manhã em que acordei com a Márcia que me assaltou esta realidade. Depois duma noite de uísque, cerveja, beijos e sexo passáramos directamente para o sonho, até às primeiras lâminas da luz do Sol nos cortarem essa paz. 

- Ainda aqui estás? - Perguntou.
- Não é suposto estar?
- Não. Devias ter saído durante a noite...

Vesti a roupa que se espalhara pelo quarto como um explosivo fogo de artifício e saí como um foguete queimado. Já na rua, estava a contar as moedas para perceber se podia beber um galão e comer uma torrada na pastelaria mais próxima quando ela veio à janela. 

- Desculpa.

Não respondi.
Porque a vida não espera, o Amor também não. A Irina queria escrever qualquer coisa e pediu-me uma caneta emprestada, já a minha torrada se transformara em migalhas. Fiquei a vê-la, na mesa ao lado, a transcrever apontamentos entre guardanapos e um caderno pequeno. Quis-me ir embora, mas não tive coragem de lhe pedir a caneta de volta, por isso esperei pacientemente que ela terminasse a escrita.
Só ma devolveu uma hora depois, agradecendo-me o gesto. Lembrei-me do beijo que a Joana me dera na bochecha muitos anos antes e que ali parecia faltar, por isso ganhei coragem e convidei-a para jantar. Quando dormimos juntos pela primeira vez, uns dias depois, ela resistiu aos meus avanços nocturnos até o sono me derrotar. De manhã, depois do sono e do sonho, ela ainda lá estava. 
O nosso Amor foi o voo dum albatroz.

2.24.2016

conversa 2189

Ela - A maior parte das mulheres não olha para ti como um potencial namorado.
Eu - Porquê?
Ela - Porque és porreiro.

pensamentos catatónicos (344)

Às vezes ela respira e ele morre. Não sabe muito bem quantas, mas tem-no feito várias vezes por dia. Morrer. E ela, que não percebe sequer que o mata, continua cruelmente a respirar como se não fosse nada. O Amor é tramado, pensa ele. E morre mais uma vez.
Acontece mais ou menos ou mesmo quando ela fala. Seja o que for que diga, provoca nele uma tempestade. Inundam-se-lhe os olhos e o sangue corre-lhe nas veias com uma forte correnteza. E ela, que não percebe nada de meteorologia masculina, continua irresponsavelmente a falar como se não fosse nada. 
As mulheres não percebem nada de homens apaixonados. Se percebessem, não respiravam nem falavam, a não ser na sua direcção. É por isso que quando um Amor se aproxima devagar, eles morrem várias vezes até renascerem de novo, de uma só vez e compensando todas as vezes que partiram. 
Ou não.

2.23.2016

é um complô!

Os homens aprendem a Amar com as mulheres. É por isso que, apesar do sofrimento, acabar um Amor e começar outro é quase sempre positivo. É um passo à frente, na verdade. Se as mulheres não quisessem ser professoras como normalmente são, à primeira asneira grave de um homem mandavam-no logo passear. Mas não o fazem, penso eu que por condescendência. Em vez de perderem toda a paciência duma vez, preferem perdê-la devagarinho. Devagarinho também, vão-no ensinando a ser um Amor melhor.
É um complô das mulheres, claro. Agindo assim, em grupo, elas sabem que têm mais hipóteses de um dia conseguirem ter um companheiro menos estúpido, um qualquer que já tenha derretido totalmente a paciência a pelo menos uma outra mulher, para compensar a paciência que a actual companheira também perdeu com outro homem qualquer.
Apesar de tudo, os homens também lucram com esta estratégia colectiva das mulheres. Por um lado porque aprendem bastante com elas, segundo porque vivem sempre na ilusão de que sabem Amar. Eles nunca topam que elas estão apenas a contar o tempo que falta para o porem à disposição de outra e acreditam que estão numa óptima relação eterna. É por isso, aliás, que são quase sempre elas a acabar com a coisa.
A condescendência das mulheres para com os homens não se fica por aqui. Enquanto elas ensinam o essencial, que é saber Amar, fingem que também têm muito a aprender com eles. É por isso que as actividades marcadamente masculinas são sempre coisas tão simples como apertar um parafuso, mudar o pneu dum automóvel ou trocar um interruptor lá em casa. Eles ficam todos contentes porque fizeram qualquer coisa e elas fingem que estão muito admiradas com a capacidade que eles demonstraram.
É claro que não cheguei sozinho a tudo isto que acabei de escrever. Foi uma mulher que me ensinou. Estávamos num restaurante qualquer quando ela me deixou e me disse que esperava que eu fosse um homem melhor na minha relação seguinte, se viesse a ter alguma. O que ela queria realmente dizer era outra coisa, que apenas lhe li no pensamento enquanto o empregado trazia a conta: "Espero ter-te ensinado alguma coisa estes anos todos!".
É um complô!

2.22.2016

coisas que fascinam (205)

Fui esperá-la ao cais. Embora fosse totalmente diferente, o barco que acabara de encostar à terra fez-me lembrar um conto de Mark Twain e aquela embarcação a vapor que atravessa o Mississipi nos seus contos do Tom Sawyer. Talvez seja o meu lado lírico, pensei. Na verdade, o que eu estava a ver era apenas um cacilheiro. O Sol batia-lhe por trás e, por isso, reconheci-a apenas pela silhueta. Fiz-lhe um gesto com a mão como que a dizer "estou aqui" e uma série de passageiros olhou na minha direcção. Talvez ali, naquele lugar e momento, houvesse mais umas dezenas de almas com um primeiro encontro marcado, à procura de alguém que fizesse um gesto igual ao meu.
Ao abraçá-la percebi isso mesmo. Pelo canto do olho vi uma série de abraços tão iguais e tão diferentes quanto o nosso. Por isso fechei os olhos por dois segundos, para que o meu pudesse ser só para mim. Quando a larguei, já só estávamos os três no mundo: eu, ela e a cidade.
E é sobre isso que eu quero escrever. Sobre a cidade.
Quando a deixei de novo no cais, ao fim da tarde, já o Sol se encontrava no outro extremo do horizonte. Provavelmente andara louco, lá em cima, à nossa procura nas ruas esguias da urbe. Fiquei a ver o barco desaparecer no rio de prata durante algum tempo e, quando finalmente me voltei, a cidade não era a mesma.
É que quando um lugar testemunha um abraço, passa a fazer parte desse momento para sempre. Se lá voltarmos, um dia mais tarde, esse lugar segreda-nos a recordação que temos dele. É como se esse abraço fosse um carimbo no tempo e no espaço em simultâneo.
Mais tarde, podemos pedir ao tempo se esqueça dele, mas nunca o podemos pedir a um lugar. No que diz respeito ao Amor, o espaço combate o tempo.

2.20.2016

conversa 2188

Ela - Não me convidas para a tua cama?
Eu - Querias que eu te convidasse?
Ela - Sim. Há tanto tempo que não dou uma nega a um gajo...

2.19.2016

respostas a perguntas inexistentes (368)

Depois de um Amor qualquer, é preciso aprendermos a não Amar durante algum tempo

Depois de um Amor qualquer, é preciso aprendermos a não Amar durante algum tempo. É a única forma de conseguirmos Amar outra vez.
Há pessoas que nunca param de Amar. Amam sempre e insistentemente como se o Amor fosse apenas o verbo e não a pessoa que se Ama. Nessas alturas e nessa situação, qualquer um que se atravesse na sua mira passa a ser Amado. Mas mal, claro.
Ser mal Amado é isso mesmo. Alguém nos Ama apenas porque precisa de Amar alguém, seja lá quem for, e fomos nós que nos atravessámos à frente. Podíamos ter sido atropelados por um automóvel na estrada ou ser atingidos por um raio, mas acabámos por ser Amados por um vazio maior do que o próprio vazio.
O Amor dá trabalho, porra! É preciso saber isso. Se ele estivesse ao virar de cada esquina, não era sequer Amor. Era um mero passatempo de fim de semana. Também pode ser, se tivermos noção que não é a mesma coisa.

Subi os degraus dos três andares para ir a casa dela. Quando lá cheguei, a porta já estava aberta. Limitei-me a limpar os sapatos num tapete que dizia "welcome" e fechar a porta atrás de mim. Olhei para o cinzeiro cansado para olhar também para ela, cujas palavras tinham morrido, pareceu-me a mim que sufocadas por meia dúzia de cigarros ansiosos.
Ela estava sentada no sofá azul onde uns dias antes me tinha dito que ia parar e não Amar durante algum tempo. Mas não conseguiu. Nunca consegue. Está sempre a Amar como se o Amor fosse a munição duma arma automática. Quem se atravessar à frente pode dar o corpo às balas.
Há um homem qualquer que dá isso mesmo: o corpo. Depois vai-se embora por tempo indeterminado e ela fica a fumar cigarros na sala. Nervosa. Eu apareço, quase sempre com uma garrafa de vinho, e digo-lhe que depois de um Amor qualquer é preciso aprendermos a não Amar durante algum tempo. É a única forma de conseguirmos Amar outra vez.
Os homens são lixados. As mulheres também.

2.18.2016

coisas que fascinam (204)

O ciúme ao contrário

Não há ciúme mais bonito do que o ciúme duma amiga. Ao contrário do ciúme clássico, aquele que se apropriou de todo o campo semântico da própria palavra, o ciúme duma amiga não aprisiona. É libertador.
O ciúme duma amiga tem sempre duas linhas orientadoras de máxima importância. A primeira é a "tem cuidado com as mulheres, que elas fazem de ti o que querem" e a segunda é "continua a tomar café comigo, de vez em quando, mesmo que te apaixones por aí".
É o ciúme mais sincero e menos egoísta que um homem pode encontrar e, como tal, não se deve desperdiçar. Nem uma gota, digo eu. 
Por falar em gotas, fiquei a olhar para elas a deslizar no copo de cerveja enquanto ouvia as perguntas calculadas dela. A B. apaixonou-se e tem ciúmes que eu fique sozinho, por aí, depois dela mudar de cidade e de vida. 
Não é o ciúme de outra mulher, mas sim do mundo. É o ciúme ao contrário, portanto. Só uma mulher é que o consegue ter. E eu agradeço.

2.16.2016

conversa 2187

(na minha casa, com a aparelhagem a tocar um cd)

Ela - O que é isto que estás a ouvir?
Eu - É o "Let Her Go", do Passenger...
Ela - Que foleiro! Ouves cada coisa...
Eu - E porque é que raio eu tenho que te ouvir a dizer que o que eu ouço é foleiro?
Ela - Porque é a minha opinião.
Eu - Mas se eu estou a ouvir é porque gosto, portanto a tua opinião não me interessa nadinha.
Ela - Mas eu dou-a na mesma.
Eu - Então eu dou-te a minha: não há coisa mais pirosa do que pensar que a música que ouvimos é que é boa e os outros não sabem escolher música...
Ela - Estás chateado?
Eu - Estou farto. Tu lês Paulo coelho, por exemplo. Alguma vez eu te disse que o Paulo Coelho é o Marco Paulo da literatura?! Não... porque respeito que o leias, mesmo que eu o deteste.
Ela - Mas esta música é foleira e não combina contigo.
Eu - Se combina ou não, sou eu que decido. O que não combina é ler Paulo Coelho e ouvir Radiohead.
Ela - Já acabou, pronto.
Eu - Queres um copo de vinho?
Ela - Sim... e não ouvimos música nenhuma hoje. 

2.15.2016

respostas a perguntas inexistentes (367)

Não sei como é que começa um Amor. Sempre que vivi o princípio de um Amor só me dei conta dele quando já tinha começado. O teu não foi diferente. Dei-me conta dele numa sexta-feira de manhã em que a temperatura estava anormalmente baixa. Três graus, creio. Só não me lembro do mês nem do ano. Estávamos a tomar o pequeno-almoço numa pastelaria de esquina e ainda não sabíamos que nessa noite íamos dormir juntos.
Do lado de fora passou uma mulher que levava uma criança pela mão. Por sua vez, a criança levava um balão verde que parecia uma pássaro aprisionado pelos pés. Queria voar, mas um cordel não o deixava. Rimo-nos, eu e tu, da ideia de um balão poder ser prisioneiro. Quando nos calámos perdi-me nos teus olhos. Verdes também. Fez-se silêncio.
Passei a chamar verde ao meu Amor por ti.
Também não sei como é que acaba um Amor. Sempre que vivi o fim de um Amor só me dei conta dele quando já tinha acabado. O teu não foi diferente. Dei-me conta dele numa segunda-feira de Verão. Só não me lembro do mês nem do ano. As árvores da rua estavam em flor e eu só reparei nisso quando desliguei o telefone. Foi preciso dizeres-me que o nosso Amor tinha morrido para eu voltar a olhar para o mundo. Até então, acho que o mundo eras tu.
O chão estava pintado de pétalas brancas e cor de rosa que cheiravam à minha memória do teu corpo. Um miúdo de skate caiu a tentar fazer uma acrobacia qualquer no passeio e uma mulher, creio que a mãe, foi ajudá-lo a secar as lágrimas. Reparei que era bonita, coisa que eu já não estava habituado a fazer.
Não sei quanto tempo durou o nosso Amor. Sei que era verde e cheirava bem.

2.12.2016

respostas a perguntas inexistentes (366)

Um lugar comum

Um destes dias aproveitei um interregno da chuva para caminhar na praia. Desde a minha adolescência que falo do mar aos meus amigos como uma necessidade constante na minha vida e, mesmo que não o veja. preciso de saber que ele está ali. O Atlântico, digo.
Na verdade, para além do Atlântico, sinto o mesmo com alguns amigos e familiares. Posso não os ver durante algum tempo, mas preciso de saber que estão ali. Da mesma forma que os visito ou marco um café com eles de vez em quando para matar saudades, vou caminhar junto ao mar outras vezes pelo mesmo motivo.
O Inverno é a minha estação preferida para o fazer, talvez por as praias estarem desertas quando o tempo piora. Gosto do desconforto da areia molhada a entrar-me nos sapatos e de sentir a ameaça do mar a morrer devagar aos meus pés como se fosse um gigante que se aninha docemente quando me vê. Às vezes paro e olho para trás para ver as pegadas que deixo na areia a desaparecer com o vento e com a água. É um lugar comum, eu sei, mas lembra-me sempre as memórias da minha vida a diluírem-se no tempo que passou. E é então que elas vêm novamente à superfície.
Nesse dia, em que caminhava sozinho com o segredo do vento, reparei que alguém fazia o mesmo no sentido contrário ao meu. Era apenas um ponto escuro na areia a deslocar-se na minha direcção e agradou-me a ideia de que pudesse ser alguém com pensamentos similares aos meus. À medida que nos fomos aproximando, apercebi-me que era uma mulher. Os seus cabelos dançavam energicamente com o capucho de um casaco grosso e de vez em quando ela parava para olhar para trás. Tal como eu, talvez estivesse também a ver as sua próprias pegadas a desaparecer.
Quando finalmente nos cruzámos dissemos olá um outro e continuámos.
E se nos tivéssemos cruzado numa avenida qualquer da cidade? É claro que não nos cumprimentávamos e, muito provavelmente, nem reparávamos um no outro. Continuei com esta lucidez de que a aproximação a alguém só é possível com alguma intimidade e partilha. Neste caso concreto, a nossa partilha era o mar. A intimidade também.
Olhei para trás mais uma vez, já a alguns vinte metros de distância dela, e os nossos olhares cruzaram-se. Dissemos adeus um ao outro e continuámos cada um no seu percurso solitário.

2.11.2016

conversa 2186

Ela - Um miúdo de pouco mais de vinte anos fez-se a mim no último fim de semana. A mim que estou quase nos cinquenta...
Eu - A sério?!
Ela - A sério. Incrível, não é?
Eu - Por acaso...
Ela - Por acaso não meteu nada. Era só para ver se ficavas espantado. E ficaste mesmo...

2.10.2016

respostas a perguntas inexistentes (365)

Ninguém é feito para o outro, mesmo que o Amor faça parecer que sim.
Dizia-me um amigo meu, este fim de semana, que todos os Amantes têm diferenças estruturais entre si que os separarão um dia mais tarde. Concordo com ele, embora acredite que esse "mais tarde" se possa eventualmente adiar para além da morte.
Quando nos apaixonamos recusamos essa análise, claro. Nenhum recém-apaixonado é capaz de dizer a si mesmo que se apaixonou por alguém incompatível consigo. Aliás, seria uma análise serôdia e inconsequente. De qualquer forma, o tempo tratará desse assunto.
E então? Vale a pena apaixonarmo-nos quando temos a consciência de que o Amor tem por definição um fim? Claro que sim. Aliás, uma vida com várias histórias de Amor pode até ser melhor do que uma vida com apenas uma. Eu até diria que o é quase sempre. O problema são os fins, sempre tristes e longos, mas a verdade é que é deles que depende um início, sempre feliz e curto.
É que uma história de Amor é sempre importante, tenha sete semanas ou sete anos. Aliás, é entre o fim de uma e o princípio de outra que percebemos o quão difícil é apaixonarmo-nos. A não ser quando por acaso acontece, claro.

2.06.2016

conversa 2185

Ela - Há quatro aspectos em que um homem tem que preencher uma mulher.
Eu - Quais?
Ela - Sexual, emocional, intelectual e...
Eu - E quê?
Ela - Já não me lembro do outro, mas sei que se o outro falha, falha tudo.

2.05.2016

respostas a perguntas inexistentes (364)

No Amor, o resultado total é sempre maior do que a soma das partes. Começamos do nada mais nada para chegar à vontade de entrelaçarmos os braços um no outro, porque Amamos sempre alguém que já nos foi estranho e não nos dizia nada.
Se calhar não damos conta da quantidade de Amores possíveis que passam por nós todos os dias e nem reparam que existimos. A mulher que hoje de manhã deixou cair a chave do carro, por exemplo. Levava tantas coisas nos braços que não podia baixar-se para apanhá-la. Deixe estar, disse eu. Ela esticou o dedo indicador da mão direita onde eu a pendurei pela argola. Obrigada, disse ela.
Depois afastámo-nos. Ela entrou num edifício de cinco andares e eu caminhei mais uns dois quilómetros até casa.
E se nos tivéssemos conhecido em férias numa praia qualquer? Ou num workshop de fotografia? Ou numa sessão de cinema? 
Conhecermo-nos num contexto que permita apaixonarmo-nos é tão pouco provável como termos nascido e sermos quem somos num Cosmos em que, como disse Sagan, há mais estrelas do que grãos de areia nas praias da Terra.
Ainda assim nós nascemos.

2.04.2016

um coala e uma árvore

Éramos miúdos, umas vezes mais do que outras. Ela tinha uma saia verde que roubara à irmã mais velha e lhe ficava mal, mas que eu gostava. Eu quase que tinha um bigode onde o que tinha realmente eram borbulhas e espinhas. Se as pernas dela pareciam palitos naquela saia tão grande, a minha cara parecia a superfície da lua, de tanta cratera aberta. E foi assim que nos apaixonámos, num Domingo em que chovia a cântaros e por uma vez nos molhámos juntos.
Com excepção das andorinhas, que faziam os ninhos nos beirais dos telhados e por isso estavam protegidas, eu não sabia para onde iam os pássaros quando chovia na Primavera. Perguntei-lhe se sabia e ela olhou para as árvores do parque à procura da resposta. Não vejo nenhum, respondeu. Eu, na verdade, também não via. Depois trovejou e ela agarrou-me o braço com força. Foi a primeira vez que fui cavaleiro andante. E a última também, creio.
Estava à espera que nunca mais parasse de chover nem de trovejar, que nunca mais saíssemos dali, com ela a agarrar-me o braço e eu à procura de pássaros na copa da maior árvore que a minha vista alcançava. Mas saímos. Ela largou-me o braço e correu para debaixo da paragem de autocarro. Eu corri atrás. Foi a primeira vez que tive ciúmes duma paragem de autocarro. E a última também, creio.
Estávamos encharcados. A saia dela pontilhada pela lama e a minha cara por um Amor serôdio. Devia ter aprendido nesse dia que não se corre atrás de uma mulher que nos larga o braço e se afasta sem dizer nada, mas não aprendi. Talvez por ela ter dito que estava frio e se ter tornado a agarrar ao meu corpo, como se fosse um coala numa árvore.
A chuva finalmente parou, não sei bem quanto tempo depois. Talvez duas horas, talvez dois beijos. Sei lá. Às vezes tenho a sensação que ainda lá estamos, ela feita marsupial e eu feito uma árvore erecta na Austrália.
Foi isso que nos sobrou da vida.
Somos adultos, umas vezes menos do que outras. Ela tem uma saia preta que diz que é de Inverno e eu tenho a barba por fazer. Para além disso temos trinta anos desde esse dia e muitas histórias que gostávamos de conseguir contar um ao outro, mas não conseguimos. É incrível como as pessoas crescem e envelhecem, mas não perdem o olhar da juventude. É preto, o olhar dela. Tão preto que me anoitece. É ele que me sorri. Não os lábios.
Rasga o pacote de açúcar vermelho num dos cantos e põe apenas metade num galão fumegante. Parece neve a ser engolida por um vulcão. Tudo o que ela faz provoca alterações no mundo. Ora anoitece, ora neva num vulcão. Dou o primeiro gole na minha cerveja e pergunto-lhe se se lembra da molha que apanhámos no parque. Os lábios também lhe sorriem agora. Que bom.
Se ela tornasse a ser coala, eu tornava a ser árvore.


2.03.2016

respostas a perguntas inexistentes (363)

Eu estava a lavar a louça e parti um copo

Lembro-me de três coisas. Quando eu lavava a louça ela pedia-me sempre para não partir os copos de vinho, na cozinha havia um relógio mecânico que se ouvia no quarto quando havia silêncio e de manhã havia sempre um intenso cheiro a café.
Entre o vinho, sempre tinto e bebido à noite em doses mais ou menos generosas, e o café matinal fazíamos Amor. Passávamos o resto do tempo a tentar não quebrar o que havia entre nós, o que implicava um esforço tão grande como aquele que eu fazia para não partir o pé alto dos copos de cristal que ela guardava como relíquias numa armário da sala.
Era uma estranha sensação de conforto não nos apercebermos que o nosso Amor já tinha acabado. Talvez por isso repetíssemos sempre as mesmas rotinas na cama e fora dela, enquanto o relógio marcava o tempo a passar como se cada segundo fosse uma pequena e indelével ferida.
Além disso, pouco mais. Às vezes o vento batia nas janelas e abria-as. Vinha ver se ainda estávamos entretidos um com o outro, esquecendo-o a ele e àquilo que ele varria quando o Outono pintava a rua de amarelo e de vermelho escuro. Uma vez ela suspirou e fechou a janela com mais força do que o habitual. Parecia zangada. Depois encostou a cabeça ao vidro e esperou doze segundos até falar.

- É estranho a morte das folhas das árvores ter cores tão vivas.

Eu estava a lavar a louça e parti um copo.

2.02.2016

conversa 2184

Ela - E então, como é que andas de Amores?
Eu - Não ando nada. Nem mal, nem bem.
Ela - Eu até nem ando mal...
Eu - Não andar mal não quer dizer que se ande bem.
Ela - Pois, o problema é esse. Acho que desisti de ser feliz para passar a ser assim assim.

2.01.2016

conversa 2183

Ela - Conheço uma mulher que gosta de ti.
Eu - Conheces?! Quem é?
Ela - Não posso dizer.
Eu - Se não podes dizer, nem devias ter começado a falar.
Ela - Mas estás curioso?
Eu - Não.
Ela - Estás, estás...
Eu - E não podes dizer, porquê?
Ela - É que não é bem gostar de ti. É mais andar desesperada...

coisas que fascinam (203)

Mãos ao ar, isto é uma paixão!

Acho que ninguém sabe como é que nasce um Amor. Aliás, também ninguém sabe como é que ele morre. Apenas nos apercebemos que ele já nasceu ou que ele já morreu. É por isso que o Amor que se promete eterno é sempre uma mentira. A vida precisa tanto da morte como a morte precisa da vida.
É claro que se pode Amar alguém até ao fim da vida. Mesmo que o Amor não seja eterno, a vida também não o é. Neste caso basta que a vida de duas pessoas dure menos que o seu Amor.
É também por isso que me cansa que alguém justifique o seu Amor com uma enxurrada de adjectivos pomposos. Na verdade, ninguém opta por Amar ninguém ou, melhor ainda, se há quem o faça é porque não sabe Amar.
A questão central é que só nos apaixonamos realmente quando somos assaltados. Alguém que se cruza connosco e nos rouba a paz de espírito com uma arma poderosa como um olhar, um gesto, uma voz ou uma palavra. Mãos ao ar, isto é uma paixão!
É claro que, como em tudo, há pessoas que são assaltadas com mais facilidade e outras com menos. Depende, essencialmente, das más ou boas companhias com que andamos e dos locais que frequentamos.