8.10.2016

vinte e quatro

Primeiro há uma casa. É aquela onde eu vivo e é velha. Tão velha que até o relógio do corredor se cansou de contar o tempo que passa. Talvez, simplesmente, se tenha fartado dos dias sempre iguais, com o pó a acumular-se nas mobílias como neve em câmara lenta. Durante anos, as únicas visitas que a casa teve foram as sombras das árvores encostadas à janela da cozinha. Vinham esconder-se do Sol e ao fim da tarde tornavam a sair. Ainda o fazem hoje em dia, aliás, e não querem saber se agora eu vivo lá. Ignoram-me da mesma forma que a cidade o faz.
É um rés do chão no bairro de Darvenitsa, no bloco treze, um quase cadáver de cimento e betão igual a muitos outros espalhados pelos subúrbios de Sófia. Parecem animais gigantescos que se cansaram de migrar e pararam de repente, como se quisessem desistir de viver e esperassem agora calmamente a morte.
A palavra conforto desapareceu do meu dia-a-dia. Não tenho um sofá, uma cadeira decente ou uma cama. Às vezes recordo-me do meu pequeno apartamento em Aveiro e pergunto-me o que estou aqui a fazer. Costumo abrir uma lata de cerveja ou encher um copo de vinho para encontrar a resposta. Escavo a minha vida da mesma forma que um cão esfomeado esgravata o chão e não encontro. Limito-me a beber, então.
Não encontro, mas sei que ela existe. Aliás, existem várias. Uma delas é que nesta casa de que falo nunca Amei ninguém. É velha, mas também é leve. Não me recorda constantemente da lição que o Amor me deu, que foi aprender a desconfiar dele mesmo. Acho até que, numa certa altura da vida, todos aprendemos essa mesma lição e que ela muda qualquer coisa em nós. Muda tanto quanto o momento em que decidimos pegar numa pequena parte da nossa vida e mudar de sítio. Pelo menos.
É com essa leveza que vou vivendo e sinto-me bem. Normalmente, quando a vida mo permite, saio de casa, caminho sete minutos até à estação de Musagenitsa e apanho o metro até uma das cinco estações mais centrais. Tenho sempre três opções: ficar sozinho, beber um copo com um dos cinco ou seis amigos que já fiz na cidade, telefonar a uma mulher de quem decidi gostar.
Há uns dias escolhi a estação de Opalchenska e ficar sozinho. As luzes dos candeeiros públicos encolhiam perante a imensidão da noite e cintilavam de frio. Junto a um pronto-a-vestir barato, duas prostitutas estavam tão quietas quanto os manequins sem rosto da montra. Uma delas deu quatro ou cinco passos na minha direcção e perguntou-me o que eu não precisei perceber para entender. Falava espanhol com sotaque sul americano e convidei-a para uma cerveja numa vinte e quatro. Não para uma cama nem para um canto escuro da cidade.
Uma vinte e quatro é uma loja que vende álcool vinte e quatro horas por dia. Não é propriamente um bar porque não se pode ficar lá dentro muito tempo (algumas nem permitem a entrada), por isso bebe-se na rua ou num dos muitos jardins que também existem.
A noite estava parada e ela disse-me para subir ao apartamento dela. Num saco de plástico muito usado levava seis cervejas de meio litro. Ela colocou quatro num pequeno frigorífico e abrimos as outras duas. Eu tirei o meu casaco e pousei-o num sofá amarelo e gasto, ela foi buscar uma camisola e vestiu-a. Perguntou-me se podia fumar. Claro que sim.
Falámos da vida. De onde somos e como fomos ali parar os dois naquele momento exacto, a uma pequena e insignificante esquina da capital da Bulgária. Como nos sentimos e o que queremos ou não da vida. Falámos de coisas de que não me lembro, apenas por falar. Depois ela parou por um momento, fitou-me nos olhos como se procurasse qualquer coisa que não tinha ainda conseguido encontrar. Apagou o cigarro numa lata de atum transformada em cinzeiro e levantou-se.

- Estou cansada. Vais-te embora ou queres dormir aqui?

Quando abri os olhos de manhã, as sombras das árvores lá fora tinham entrado em casa dela para se esconderem do Sol. Com os meus olhos ainda em esforço, procurei um relógio qualquer para saber que horas eram. Havia um de plástico numa das paredes, mas estava parado.

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