11.30.2015

é tudo uma questão de toque

Tiveram uma separação difícil. Para ambos, entenda-se. É natural que depois de quase vinte anos a partilhar a vida com outra pessoa não se saiba aproveitar a liberdade de estar só. Estar só é bom, mas requer treino, experiência e aprendizagem. Talvez por isso mesmo, alguns meses depois ainda telefonassem um ao outro regularmente, mais para ouvir do que para falar. A voz do outro fazia-lhes falta.
Combinaram tomar café um Domingo, depois do almoço, mas acabaram na cama dele numa tarde de sexo de que já não se lembravam de ter. Sem os mecanismos de quem dorme lado a lado todos os dias e com a improvisação e energia de quem acabou de se apaixonar. Mesmo assim não repetiram a experiência. Sabiam que o caminho não podia ser o de regresso. E assim chegaram finalmente ao silêncio entre ambos.
Passado alguns meses ela apaixonou-se e tornou a casar. Pelo menos foi o que ele ouviu dizer. Nessa tarde chorou um bocado, sem ninguém ver, e depois convidou uma garrafa de uísque para passar a noite. A ressaca fez-lhe bem. Foi com dois comprimidos para as dores de cabeça e uma garrafa de água com gás num café dos subúrbios que teve olhos pela primeira vez para outra mulher. Não que se tenha apaixonado, mas pelo menos interessou-se. Sorriu.
Ela era morena, pele muito branca e um sinal no queixo. Não seguia nenhum padrão especial de beleza, mas parecia ter em excesso aquilo que lhe faltava a ele: a vida resolvida. Além disso era simpática sem ser dada e era decidida sem ser arrogante. Enfim, um luxo. Tinha comprado uma garrafa de Sumol de Laranja de litro e  meio, quatro pães da avó e tomado café ao balcão. Nunca mais a viu, mas o momento foi interessante. Tão interessante como uma data de nascimento.
Depois de nascer vieram as dores de crescimento. Noites de sexo falhado e dias de Amor empatado. Era quase sempre uma questão de pele. Ao primeiro toque numa mulher percebia a diferença e uma tonelada de memória caía-lhe em cima. O que ele mais ansiava era pelo momento a seguir ao sexo, aquele em que se olha para o tecto e se descobre realmente o outro, já depois de lhe ter conhecido o corpo.
À partida, seria num desses momentos que ele se apaixonaria de novo, não fosse o Amor ser sempre o contrário do que pensamos que vai ser. Comprou um bilhete de autocarro sem querer ir a lado nenhum, apenas para dar uma volta à cidade sem ter que se esforçar. As luzes dos candeeiros públicos misturavam-se com a negritude do fim de tarde numa estranha aguarela abstracta. Uma mulher sentou-se ao lado dele e adormeceu em poucos minutos. Encostou-se ao seu corpo como se fosse uma cria de pássaro num ninho e deu-lhe uma mão. Ele deixou-se ir até ao fim, respirando suavemente para não a acordar.
É tudo uma questão de toque, pensou.

11.29.2015

conversa 2174

(ao telefone)
Ela - Abraça-me, por favor.
Eu - Como?!
Ela - Com palavras.

11.27.2015

conversa 2173

Ela - Tens alguma coisa para fazer no sábado?
Eu - Sim.
Ela - O quê?
Eu - Nada.
Ela - Então... tens ou não tens?
Eu - Tenho. Tirei sábado para estar sozinho e não fazer nada, portanto, se alguém me perguntar se estou ocupado, digo que sim.
Ela - Sabes que eu entendo porque é as mulheres se fartam de ti num instante?

11.26.2015

uma bola no fundo do copo

- E a Márcia?
- E a Márcia o quê?
- É bonita. Nunca te apaixonaste por ela?

O fundo do meu copo de cerveja tem uma bola verde. Não sei porquê, mas suponho que seja para o distinguir dos copos de cerveja dos outros bares, que são todos iguais. Não costumo sentar-me em praças de alimentação em shoppings a beber cerveja, mas desta vez não tive escolha. A Marta trabalha ali perto e não tinha tempo para ir a outro sítio.
Mesmo ali, num ambiente que considero inóspito, gosto de a ver. A Marta é uma daquelas amigas que tanto posso visitar cinco vezes numa semana, como depois passar três ou quatro meses sem lhe pôr a vista em cima. De qualquer forma, sei que quando ela me telefona para tomar café é uma ordem que, mesmo que seja num centro comercial, eu acato.

- Desde quando é que um homem se apaixona por uma mulher só por ela ser bonita?!
- Desde que é homem... - ri-se.

Rio-me também.
A Marta pensa que eu gosto muito de mulheres, o que até é verdade. O que não é verdade é que gosto de muitas ao mesmo tempo. Gosto de uma de cada vez e tenho uma enorme dificuldade em deixar de gostar. Normalmente, quando tenho que o fazer, começo a reparar em coisas tão absurdas como o facto de um copo de cerveja ter uma bola  verde pintada no fundo. Por isso mesmo afasto o copo vazio para o lado e esqueço o que vi.

- E então?! Apaixonas-te por quê?! Diz lá. Inteligência? Sensibilidade?
- Sei lá...
- Não sabes?
- Claro que não. Normalmente apaixono-me por uma mulher. Nunca consegui simplificar com adjectivos uma mulher. Nem sequer tento...

Um homem aproxima-se e cumprimenta a Marta. Ficam os dois a falar um bocado sobre uma coisa qualquer que não me diz respeito. Por um momento não interesso para nada e gostava de ainda ter alguma cerveja no copo. Nem sequer sei para onde olhar ou onde pôr as mãos. Suspiro. Sei que ela me ia dizer qualquer coisa que eu queria ouvir, mas o mais provável é já nem se lembrar quando ele se for embora.
Levanto-me e faço, propositadamente, algum ruído com a cadeira. Escolho outro bar para ir buscar mais uma cerveja, apenas pela curiosidade da bola no fundo do copo. Escolho um onde uma mulher bonita, por trás do balcão, parece impaciente por não ter clientes.

- Uma cerveja de pressão, por favor.
- Um fino?!
- Isso...

Não, definitivamente não me apaixono por uma mulher apenas por ela ser bonita. Esta é muito bonita, por exemplo, e sei que nunca me apaixonaria por ela. Na verdade, nem sequer gosto muito da forma como ela me atende, apesar de ser simpática.

- Um e vinte!
- Obrigado.

O homem está a ir-se embora. Óptimo. A Marta não mo apresentou e eu não tive que fazer um sorriso amarelo para parecer simpático. Sento-me. A bola no fundo do copo é amarela. Curioso, já sei porque é que não gostei da rapariga. Foi o sorriso amarelo. Os sorrisos desta cor não nos definem como pessoas, mas definem a incompatibilidade entre uns e outros. Acho eu, pelo menos.

- Lembras-te do que me ias dizer? - Pergunto.
- Não, desculpa. Foste buscar uma cerveja e não me trouxeste uma...

Ela levanta-se. Fico a vê-la a serpentear as mesas cheias de tabuleiros e restos de comida até se encostar a um balcão. É bonita e não me faz sorrisos amarelos, mas nunca me apaixonei por ela. Nem sequer na noite em que nos beijámos dentro de uma tontura alcoolizada. Acho que às vezes a vida é mais sobre as relações que não temos do que sobre as que temos.
Não sei qual é a cor da bola que ela trará no fundo do copo.

11.24.2015

limpar os pés e pedir licença

Uma excitação levemente alcoolizada. Era o momento perfeito, pensou ele assim que ela o convidou para subir. Tinha-a acompanhado a casa apenas pelo tradicional cavalheirismo e agora adivinhava um mundo de prazer à sua frente, pelo menos por uma noite. Sexo quase de certeza e, com sorte, repetido na manhã seguinte. 

- Só um copo de vinho, então! - disse.

Ela sorriu. Adorava que os homens não admitissem ao que iam. Sempre lhe pareceu que eram os mais sinceros na cama, aqueles que eram mais mentirosos nas palavras. O último com que tinha tentado rasgar a solidão em que vive dissera apenas "claro!" e, com tanta ânsia e clarividência masculina, ela acabara a olhar para uma melga que tropeçava no tecto do quarto enquanto ele se masturbava dentro dela. Fez-lhe o favor de o deixar acabar e depois inventou uma desculpa qualquer para o mandar embora. Não houve manhã seguinte.
Subiram num elevador demasiado pequeno para os dois. Ainda não era o momento de se tocarem e, sobretudo, de se cheirarem. Depois de uma noite a dançar num dos poucos bares da cidade onde ainda se fuma, não era pelos aromas que se iam atrair. 

- Em que andar vives?
- Quinto. É rápido.

Ela abriu a porta e entrou primeiro, sem limpar os sapatos no tapete. Foi à cozinha confirmar que tinha uma garrafa de vinho tinto com um rótulo que não parecesse muito mau. Ele demorou alguns segundos no tapete de entrada e depois, já sem contacto visual com ela, pôs a cabeça dentro de casa e pediu licença com o primeiro passo.

- Não sejas tolo. Entra!

A vantagem do vinho é que substitui as palavras quando elas ficam presas na língua. Deram alguns goles pequenos entre sorrisos amarelos e atrapalhados, até ele se encostar à parede e desligar o interruptor da luz com as costas. Foi sem querer, mas pareceu de propósito. O primeiro beijo não teve testemunhas oculares.
Não era a primeira vez que passava a noite na casa duma mulher acabada de conhecer, mas sentia-se um pouco intimidado. Além disso, sempre achou que o melhor Amor é aquele em que se entra devagar, a pedir licença depois de limpar bem os pés. 
Já na cama, nu e com o falo no descanso do guerreiro, lembrou-se do seu primeiro pensamento: "com sorte, sexo na manhã seguinte". Ela também já dormia mas, entre os seus sonhos, abraçou-o e pousou-lhe a cabeça no peito com a leveza duma andorinha.
O sexo em que se limpa os pés à entrada e se pede licença é o sexo que se prolonga no tempo. Às vezes na vida.
Quem sabe?

11.22.2015

conversa 2172

(na minha casa)

Ela - Tens o fogão todo sujo.
Eu - Eu sei...
Ela - As manchas de gordura são as mesmas da última vez que cá vim, na semana passada.
Eu - Isso é porque eu não o limpo há mais de uma semana.
Ela - Não sei se conseguia viver contigo, assim com as mesmas manchas de gordura no fogão durante uma semana.
Eu - Eu não sei se conseguia viver contigo, assim a criticar-me por eu não limpar o fogão todos os dias.
Ela - Percebes que não é normal ter o fogão assim?
Eu - Percebo que vivo sozinho precisamente para ninguém me chatear com essas coisas e tu estás a chatear-me na mesma.
Ela - Eu também devia viver sozinha, se calhar. O meu marido é mais ou menos como tu e estamos sempre em conflito com este tipo de coisas.
Eu - Coitado do teu marido.
Ela - Aí estamos de acordo.

11.21.2015

Você é linda!

Estava na cozinha a abrir uma lata de tomate aos pedaços, daquelas mais baratas, quando o telemóvel tocou. Tu não sabes, mas há vários meses que me lembro de ti sempre que ele toca. Cada vez que o ouço, corro para ele na esperança de ver o teu nome no ecrã e preparo-me para te dizer "olá" com a voz mais natural possível.
Mais uma vez não eras tu e acabei, como é costume, por dizer "olá" num tom decepcionado. Prendi o telemóvel entre o ombro e a orelha para libertar as mãos e poder continuar a cozinhar. Despejei os pedaços de tomate para o wook, juntei dois dentes de alho esmagados, um fio de azeite e uma malagueta. Depois acendi o lume e encostei-me a uma das paredes da cozinha a ouvir a minha interlocutora.
Uma vez perguntaste-me se havia alguma música que me lembrasse de ti e eu respondi-te que sim. Aconselhaste-me a configurar o telemóvel para tocá-la sempre que fosses tu a ligar-me. Deixa-me dizer-te que ainda bem que nunca o fiz. Assim, agora ganho uma vã esperança de seres tu mesmo quando não és. São alguns segundos em que a minha vida volta a ganhar cor. E sabem-me bem, esses segundos. Obrigado por seres uma música.
Não sei se já te aconteceu não conseguir ouvir uma pessoa por estares a pensar noutra. A mim acontece-me frequentemente por estar a pensar em ti e admito que perdi, muito provavelmente, mais de metade do telefonema. Ainda assim, nesse pântano sonoro em que me encontrava, uma frase ficou-me gravada na memória como se fosse uma tatuagem definitiva.

- Não era bem contigo que queria falar, mas ele não me atende o telefone e eu preciso desabafar...

Não percebi logo o contexto em que ela me disse aquilo, mas foi como se me despertasse do hipnotismo em que estava por ter saudades tuas. Talvez, não sendo tu a telefonar-me, eu possa aproveitar a voz de outra pessoa qualquer, mesmo que seja de alguém que me chama apenas para desabafar. É como se nós pudéssemos emprestar um bocadinho do que somos a quem não quer tudo mas, de facto, um bocadinho dá jeito naquele momento.

- O que é que estás a fazer? - perguntou.
- A pôr dois ovos a escalfar em tomate frito. Se quiseres ponho quatro e vens cá jantar...

Um quarto de hora depois ouvi-a tocar à campainha. Já eu tinha a mesa posta com dois pratos, uma garrafa de vinho branco e uma música a passar no antigo sistema midi que ainda tenho na sala. "Você é Linda" do Caetano.

11.20.2015

coisas que fascinam (198)

O plano A

Para tudo podemos ter um plano B.  Menos no Amor. Se no Amor tivermos um plano B, então não é de Amor que falamos. É só por isso que nos sentimos perdidos quando alguma coisa corre mal com as nossas emoções. É que todos os planos, que não verdade são só um, parecem estar a falhar.
Ainda assim, o tempo que passa por nós e nos engelha a pele é o mesmo que nos ensina que podemos ter vários planos. Apenas não podem ser contemporâneos. Os planos A podem suceder-se, os planos B nunca existem.
Porque é de tempo que falamos quando falamos de Amor, foi esse mesmo tempo que me ensinou a perceber até quando me devo manter no meu plano A. É enquanto os olhares que se cruzam no ar se agarram como borboletas tontas e os braços se amarram como cordas de um navio. É só isso que define um Amor. É só isso que me mantém no meu plano A.


respostas a perguntas inexistentes (354)

uma mulher na passadeira

Mesmo à minha frente, uma mulher atravessa a avenida com as mãos nos bolsos dum casaco comprido. Foi a primeira a pisar os traços brancos da passadeira, assim que o semáforo para peões ficou verde, mas vai ser última a chegar à outra margem, aquela em que eu estou petrificado como uma estátua esquecida. Todos os outros transeuntes, apressados, ultrapassaram-na como se estivessem a chegar à meta numa prova de velocidade e agora passam por mim tangendo-me os ombros com toques embrutecidos.
Os motores dos automóveis rosnam como cães raivosos atrás de um portão de ferro, ameaçando avançar com a mesma ânsia.
Apercebo-me agora que todos os que tenho visto na rua parecem estar com pressa para chegar a qualquer lado. Menos ela, claro, que finalmente passa por mim. Trocamos olhares durante dois segundos e ela continua até desaparecer numa esquina qualquer. Foi a única que me viu. Foi a única que eu vi...

11.19.2015

pensamentos catatónicos (340)

Estava a lavar a louça e feri-me na ponta de uma faca de cozinha. Cortei um dedo. Durante três segundos fiquei a ver o sangue misturar-se com o detergente em pequenas porções de vermelho. É estranho. O sangue lembra-me sempre de ti. Talvez por sair de dentro de mim.
O dedo, o indicador da mão esquerda, ganhou uma dor latejante. Larguei o esfregão, a faca e o copo que tinha entre as mãos e disse uma asneira que só as paredes ouviram. É estranho. As paredes lembram-me sempre de ti. Talvez por ser com elas que falo da solidão que é não te ter.
Rio-me. Acho que a maior parte de nós não dá a devida importância às paredes. Em silêncio, construímos muros que nos separam, como os que dividem Jerusalém da Cisjordânia ou o México dos EUA. Só nos manifestamos quando eles caem, como quando caiu o de Berlim. De alegria, claro. Temos a mania de gritar felicidade e de engolir a tristeza.
Talvez um dia destes eu derrube estas paredes e grite ao mundo que gosto de ti. Talvez o mundo organize uma banda com tambores e oboés. Será o dia da revolução. Até lá, direi asneiras às paredes.

11.16.2015

respostas a perguntas inexistentes (353)

É tão bom

É tão bom não te esquecer, ter na pele a confirmação do nosso Amor na memória de um toque que, ainda que efémera, é a única confirmação possível de qualquer Amor. É tão bom tudo o resto ser a incerteza de sempre e ser apenas nela que vivo. Mesmo a de quando não precisava de me lembrar de ti.
É tão bom seres tu este vento outonal que me faz apertar os colarinhos do casaco logo de manhã, enquanto aqueço as mãos numa chávena de café quente e ouço as conversas dos outros. Uma criança a apontar o dedo para um pastel colorido na vitrina e o pai à procura do jornal nas mesas do café, uma mulher a contar as moedas para saber quantos pães pode comprar e um homem já embriagado a falar dos atentados em Paris. A vida é uma palermice sem ti.
É tão bom seres a mulher que trava bruscamente para me deixar passar na passadeira e que me sorri por trás de um pára-brisas escurecido, morreres-me a cada cinco minutos num suspiro perdido ou num olhar solitário. É tão bom saber que todos os olhares que se cruzam na cidade são olhares de pessoas sós e que o meu se lembra de ti.
Uma poça de água a beijar o alcatrão sujo, por exemplo, é o toque húmido dos teus lábios na minha pele. Fico a vê-la ondular, depois de uma motorizada ruidosa me cortar o pensamento, e transforma-se no mar de Verão onde tu molhaste os pés. 
Vou só molhar os pés, disseste. E eu na toalha vermelha, derrotado pelo Sol, à espera do teu toque outra vez por um segundo que fosse. A incerteza no Amor é a certeza de que a qualquer momento me podes tocar outra vez e, mesmo que nunca o faças, é tão bom não te esquecer.

11.12.2015

pensamentos catatónicos (339)

a dor de pescoço

Das dores de que falamos quando falamos de Amor, a do coração é a mais conhecida. O coração dói-nos quando o Amor também nos dói. Há também quem fale na dor que sente no peito, quando a palavra "coração" parece demasiado específica e pequenina para falar de Amor. Depois vem a dor de corno, quando o Amor que falhou partiu para parte incerta e nós nos zangámos com o mundo.
Quanto tu me faltas eu falo da dor de pescoço, uma dor de que ninguém fala não sei porquê. Talvez nunca tenha sido diagnosticada nos Amantes falhados apesar de, tenho a certeza, ser bastante comum. É a dor da falta da tua cabeça encostada ao meu pescoço, num abraço que sempre me pareceu o mais bem encaixado do universo. A tua cabeça encostava ao meu pescoço como a peça de um puzzle. Sabes aquela parte redonda que encaixa de forma perfeita na peça ao lado? Era isso... depois abraçava-te e ficávamos assim...
Às vezes, quando estou sozinho e me lembro de ti, vem-me essa dor de pescoço que é também a minha dor de Amor. As dores do Amor são sempre dores de uma parte qualquer do nosso corpo, porque é no corpo que o Amor carimba o tempo que passa.

respostas a perguntas inexistentes (352)

o melhor de dois mundos

O vinho e o Amor são os melhores amigos do Homem. Ambos prometem aquilo que não podem dar: uma vida inteira de paixão e de bebedeira. Não faz mal, porque ambos são capazes de nos fazer acreditar que sim. Com o Amor nos embebedamos e com o vinho nos apaixonamos, acreditando sempre na eternidade dum Amor bêbado, pelo menos até ele acabar.
O fim de um Amor é a sobriedade da vida e estar sóbrio é uma merda. É tornar a acreditar que a felicidade é um luxo a que só nos podemos dar de vez em quando, sempre depois de muita tristeza. Estar sóbrio é aceitar que a injustiça é a normalidade da vida. Assim como trabalhamos muito para ganhar um salário baixo, sofremos muito para ganhar uma felicidade precária.
Os melhores Amantes seriam aqueles que bebem, se não se perdessem na bebida. Os melhores bêbados seriam aqueles que Amam, se não se perdessem no Amor. É por isso que eu peço: Embebedem-se com paixão e apaixonem-se com vinho. É o melhor de dois mundos.

11.10.2015

conversa 2171

Ela - Uma das coisas que mais me atrai em ti é que tu não te apaixonas por uma mulher pela beleza física dela.
Eu - A beleza física também conta...
Ela - Eu sei, mas para ti não é o principal.
Eu - Não, não é o principal...
Ela - E isso é apaixonante em ti. É pena tu próprio não seres assim muito bonito.

respostas a perguntas inexistentes (351)

Estou deitado, embrulhado nos teus lençóis como um louco num colete de forças, enquanto tu vagueias pelo quarto. Quando saíres, daqui a alguns minutos, vou-me arrepender de não me ter levantado. O Amor termina sempre que te afastas sem me dizer nada. Ainda assim, não é a preguiça física ou mental que me faz prolongar o tempo nos teus lençóis usados. É tu estares nua. Tu nua no quarto e eu deitado devia ser o fim do tempo.
A nudez nunca enganou ninguém no Amor. As palavras sim. As palavras mastigam um Amor da mesma forma que a nudez mastiga os lençóis onde dormimos os dois. É por isso que te admiro. Sais, fechas a porta do quarto, e os teus passos caminham decididos até à porta, levando com eles o teu corpo e o teu silêncio sincero.
Depois de te ires fica tudo por fazer. A cama e o Amor. Pela janela, vejo os postes de iluminação da rua que segredam entre eles o teu percurso. Sabem para onde foste mas não me dizem nada, os sacanas. Às vezes até se riem de mim. Sabem da minha fraqueza e da minha solidão contigo.
Se eu me fosse embora agora e te deixasse uma carta escrita, em princípio na tua almofada, dir-te-ia que quase tudo o que procuro num Amor é a mentira constante das palavras, mesmo aquelas que trocamos quando tomamos café ou comemos o prato do dia no café da esquina. Quando mentimos é porque temos um desejo. É esse o sustento do Amor. 
Não acredito na verdade.

11.08.2015

coisas que fascinam (197)

O Amor deve ser das poucas coisas neste mundo que só acaba depois de já ter acabado. Ao contrário de um copo de vinho, de um prato de comida, de uma amizade ou de uma viagem, nunca damos pelo fim do Amor a não ser algum tempo depois dele já se ter ido. Ainda assim, o Amor é isso tudo: um copo de vinho, um prato de comida, uma amizade e uma viagem.
A diferença está na linha do horizonte que se desenha em tudo, mesmo que com traços indecisos, menos no Amor. Um copo de vinho satisfaz, um prato de comida também, uma amizade e uma viagem também. Um Amor não.
Bebo esse copo enquanto almoço na companhia de um amigo, numa curta viagem de fim de semana, e explico-lhe que talvez o Amor me tenha avisado do seu fim antes de ter acabado. 
Ele ouviu-me, mas não reagiu. No televisor silencioso, alguns polícias americanos perseguem latino-americanos no vídeo duma música que não conheço nem passei a conhecer, o que dá um ar surrealista à conversa. Talvez esteja a pensar na hipótese do seu próprio Amor ter terminado.
Não sabemos muito bem onde a viagem nos vai levar, mas a descoberta do momento é que podemos repetir o vinho. Diz ele como se tivesse acabado de descobrir a pólvora. Pede mais uma garrafa, redesenhando com um copo vazio no ar e um "outra, por favor" um dos nossos horizontes.
Descobriu mesmo a pólvora. Talvez eu possa repetir-te também.

11.05.2015

É por isso que estou aqui

Estou sentado ao balcão de um bar qualquer onde nunca tinha entrado. É pequeno, o espaço, e do outro lado uma mulher vai fingindo que tem coisas urgentes para fazer. Eu percebo-a. Não a conheço de lado nenhum e, se ela estivesse desocupada, estaríamos demasiado perto um do outro para quem não tem nada a dizer ao outro. Provavelmente seria eu a beber este copo de uísque a correr para procurar alguma privacidade noutro lado qualquer.
Porque é que não vou para casa? Porque preciso de estar sozinho com alguém perto de mim. De preferência alguém que não me conheça e finja estar a fazer alguma coisa para não cruzar o seu olhar com o meu. É assim que estamos os dois, a fingir que não damos pelo outro apesar de ambos termos uma presença pesada.
Ela é bonita. Tenho a sensação que muitos homens já se apaixonaram neste mesmo balcão. Talvez alguns tenham tentado meter conversa com ela e outros tenham simplesmente bebido demais para esticar o tempo deste impasse.
Ela não sabe, mas eu não estou assim tão sozinho como parece. Tudo o que eu faço já fiz contigo ao meu lado. É por isso que continuas a estar comigo, apesar de não estares. Por exemplo, há bocado abraçaste-me e pediste-me para molhar os lábios no meu copo. Depois disseste-me que não percebes como é que eu bebo estas coisas. Fizeste uma careta e eu saboreei o simples facto de existires.
É por isso que bebo estas coisas. Tudo o que bebo, o que como ou o que respiro sabe-me à tua existência e isso chega-me para me sentir feliz. Feliz é a palavra. Não há outra para definir o meu Amor por ti.
Ou então há. Estar assim num espaço pequeno, com uma mulher à minha frente sem fingir que está ocupada a fazer qualquer coisa, só me acontece contigo. Mesmo que tão calada como este copo que bebo. É por isso que estou aqui. 
Onde estiver estarei bem.

11.04.2015

respostas a perguntas inexistentes (350)

O Amor dispensa planos. Quando duas pessoas que se Amam fazem planos fazem-nos para a vida, mesmo que pensem que os estão a fazer para o Amor. O Amor pouco mais planeia do que Amar. A vida é que requer planos para tudo, desde cada refeição até à forma como se vai ganhar a vida. Aliás, é por isso que falamos em ganhar a vida mas nunca falarmos em ganhar o Amor.
O Amor é estatisticamente absurdo. Somos sete mil milhões de pessoas no planeta, mas quando nos apaixonamos passamos a acreditar que encontrámos a única que realmente queremos Amar. É uma mentira óbvia em que passamos a acreditar. Uma vez disse-te que acho que aceitamos essa mentira porque Amar alguém é um acto criativo. Apesar de não haver planos, cada Amor entre duas pessoas é diferente do outro. É por isso que, ainda assim, é mais difícil Amar do que viver. A vida pode-se ganhar, o Amor não.
Quando me calei tu sorriste, apagaste as quatro velas da mesa do jantar com os dedos humedecidos na tua própria língua e molhámos a nossa vontade no fundo de mais um copo de vinho. Depois deitámo-nos na tua cama com os lençóis já tão usados. Acho que foi a primeira vez que fizemos Amor. Estava tudo planeado, menos isso.
É do que me lembro. Do jantar não.

11.02.2015

pensamentos catatónicos (338)

Em vias de extinção

Percebi hoje que o Amor em mim  é uma espécie em vias de extinção, talvez fruto da tua caça exacerbada e da consequente destruição do meu habitat natural. Ainda assim, como presa, não me lembro de te fugir.
Percebi hoje (não se veio nas notícias) que o que ainda resta foge agora de tudo. Quando sinto perigo, escondo-me em casa com um livro do Paul Auster e uma garrafa de branco, como se fossem esses os mantimentos possíveis para um longo Inverno hibernado. Raramente arrisco expor-me no terreno e, quando o faço, faço-o pela calada. Evito ser presa e recuso-me ser caçador.
Talvez esteja à espera que me caces de novo, uma noite qualquer, no corredor movimentado de um centro comercial. Se o fizeres, extingo-me. É disso que estou à espera.


respostas a perguntas inexistentes (349)

Uma incerteza certa

Com a vida, aprendemos que o Amor é a certeza mais incerta. Sempre que vivemos um Amor, temos a certeza que ele é tão forte que nunca vai falhar. Até ao dia em que falha, claro.
Podemos repetir a experiência uma, duas, dez ou vinte vezes que não interessa. Sempre que nos apaixonamos e somos correspondidos, o Amor enche-nos a alma de certezas e, mesmo que a nossa História nos diga que o Amor é incerto, não acreditamos. O Amor cega-nos para o podermos ver um bocadinho melhor. Deixamos de ver o que pode correr mal para ver apenas o que pode correr bem. Não podia ser de outra maneira. Se duvidamos do Amor, então é porque não é Amor o que vivemos. Nalguns casos mais intensos, podemos também aprender que o Amor é a incerteza mais certa. Se por acaso vivemos um Amor forte, mas com base na incerteza, podemos ter a certeza que mesmo quando tudo falhar continuaremos a Amar. 
E da incerteza da minha vida é a única certeza que tenho.