10.28.2014

respostas a perguntas inexistentes (292)

Conhecer alguém é a melhor coisa que nos pode acontecer. Já me aconteceu inúmeras vezes conhecer pessoas de quem gostei tanto, que não percebo o péssimo estado em que o planeta se encontra. É como se o resultado disto tudo fosse (e é mesmo) pior do que as partes que o constituem. Também já me aconteceu conhecer pessoas detestáveis, é verdade, mas muito menos vezes do que pessoas de quem gostei.
Na verdade, considero-me um pessimista relativamente ao mundo e um optimista relativamente às pessoas. Praticamente já não leio jornais e abdiquei totalmente dos programas de televisão, que considero tão estúpidos quanto estupidificantes e me fazem sentir mal. Depois, quando conheço alguém, raramente corresponde ao que considero ser essa estupidez. É por isso que cada vez que travo um conhecimento nasce de novo em mim uma esperança qualquer.
Acho que a amizade passa muito por aqui, por nos salvarmos todos os dias do enorme absurdo em que o mundo se tornou. O Amor também, com a vantagem de que ele próprio é um mundo diferente.

10.24.2014

conversa 2115

Ela - Não ganho para os copos, actualmente...
Eu - A sério?
Ela - A sério...
Eu - Não fazia ideia ideia que isso andava assim...
Ela - Pois, não sei o que se passa. Ainda ontem foram dois.
Eu - Dois quê?
Ela - Dois copos.
Eu - Copos de quê?
Ela - De vinho, daqueles de pé alto.
Eu - Bebeste dois copos e achas muito?
Ela - Só bebi um. Parti foi dois copos enquanto os lavava. Está sempre a acontecer...
Eu - Ah! Não ganhas para os copos porque os partes, é isso?
Ela - Claro. Pensavas o quê?
Eu - Nada, nada...

10.23.2014

queixinhas

Quando eu era pequeno só se apresentava queixa a uma autoridade. Se um colega me batesse na escola primária, a autoridade era a professora; se o meu irmão me roubasse um brinquedo qualquer, a autoridade era a minha mãe; se alguém me assaltasse na rua, a autoridade era a polícia. O problema era quando queria fazer queixa de um Amor mal resolvido, cuja autoridade no planeta Terra ainda está por encontrar.
Nós, os queixinhas do Amor, precisamos sempre duma autoridade. Acho que foi por isso que fiz este blogue. À falta de autoridade fui-me queixando ao mundo, até que o mundo lá me prestou alguma atenção e me resolveu o problema.
Há bastante tempo que eu não me queixo de Amores, sem qualquer garantia que um dia destes não o volte a fazer. O Amor é assim, um dia acordamos e ele já não está ao nosso lado. Nesse dia tornarei a bater-vos à porta, pedir licença e informar que venho apresentar queixa: "Meus amigos! O meu Amor fugiu...".
As queixinhas sobre o Amor são as únicas que não devem ser engolidas. Em primeiro lugar porque são comuns a todos nós, em segundo porque nunca são digeridas e acabam por causar vómito, em terceiro porque são as únicas que não exigem vingança nem execução alheia. Se eu sempre quis que a professora batesse no meu colega, a minha mãe no meu irmão ou a polícia no ladrão, do mundo só quero que deixe o Amor andar por aí em paz.
Do Amor, queixem-se sempre ao mundo. Ninguém vos leva a mal.

10.19.2014

pensamentos catatónicos (317)

Estou a pôr a roupa a secar. Do outro lado da rua uma mulher fuma um cigarro e olha para um gato preto que costuma andar por ali.
Tenho um método para pendurar a roupa um bocado estranho. Começo sempre pelas peças maiores. Sei que o trabalho é o mesmo, mas o monte de roupa que falta pendurar parece mais pequeno quando começo pelas peças maiores. Se pendurar duas toalhas de banho, por exemplo, o tamanho do monte diminui num instante. Além disso é uma questão estética, gosto que as peças maiores fiquem atrás e as mais pequenas à frente. As meias, por exemplo, ficam sempre no primeiro arame do meu estendal a contar da rua.
Cada peça leva sempre duas molas, seja grande ou pequena, com excepção precisamente das meias, que levam uma mola por par. É que as organizo por pares logo quando as ponho a secar. Assim, quando as apanho, dobro-as no mesmo instante e poupo o trabalho de as andar a escolher entre o monte da roupa seca mais tarde. É também por isso que as penduro em último lugar. É mais fácil separá-las quando já não há mais roupa nenhuma misturada.
O gato está a aproveitar o que parecem ser os primeiros raios de sol nesta semana. A mulher também. Sempre que olho para ela, ela está a olhar para o gato. Suponho que talvez olhe para mim de vez em quando, quando estou de costas a pendurar a roupa. Eu não fumo, mas se fumasse também o estaria provavelmente a fazer neste momento.
Hoje sei que tenho duas coisas estranhas na vida. Pelo menos duas, digo. Uma é a forma como penso quando penduro a roupa, outra é a minha relação com a minha vizinha da frente. Ainda há bocado me cruzei com ela no café e fingi que não a conhecia, o que ela também fez comigo. Agora estamos aqui os dois a fingir que o outro não existe.


10.14.2014

respostas a perguntas inexistentes (291)

O Amor é um pudim

Quase ninguém pensa no Amor que está a viver como o Amor que está a viver, mas sim como o Amor que quer viver a vida toda. Toda mesmo, até ao fim. É sempre um problema, porque uma vida toda não cabe no presente. É demasiado grande, e mesmo que às vezes custe perceber que é assim, ainda bem que o é.
É que o Amor é um pudim. Quando sabe bem, depois da primeira colherada não queremos que ele acabe nunca mais. À medida que o vamos saboreando vamos também sofrendo por ele estar cada vez mais pequeno.
Um Amor acaba, outro Amor começa. O sabor pode nunca ser o mesmo, mas a intensidade certamente que o é. O truque é saber aguentar o tempo entre um e outro pudim, como quando se vai lambendo os restos que ficaram entre os dentes. A imagem talvez não seja a melhor, é verdade. Ainda assim é a mais real, porque o Amor também é saliva, bactérias e restos de comida.
Dos pudins que se comem, no entanto, pode haver um que dure mais tempo do que o normal. Diria eu, pelo menos. Quando não se quer mudar, aprenda-se a cozinhar.

10.13.2014

the last but not the least

Com o café veio uma prenda.
Dado que para o Intercidades já só havia bilhetes de primeira classe, optei por ganhar meia-hora para comer uma sopa e beber um café, apanhando o Alfa Pendular seguinte. Na estação de Santa Apolónia vivia-se um formigueiro mais ou menos intenso, próprio do fim de tarde de um Domingo.

- Uma sopa e um café, por favor! - Pedi enquanto olhava discretamente para as tatuagens coloridas da empregada.

Tive que empilhar alguns tabuleiros e loiça suja para arranjar lugar sentado. Alguns clientes comiam sandes variadas em pé, apenas apoiados pelo balcão ou até pela parede do café. Em pé também, mais ou menos perto de mim, uma mulher fazia equilibrismo para conseguir comer uma sopa quente igual à minha. Fiz-lhe sinal para se sentar na minha mesa, enquanto afastava a torre de tabuleiros, mas ela recusou com algum embaraço.
Depois chegou a hora da luta pelo café. Cerca de uma dezena de clientes que tinham acabado de comer qualquer coisa amontoavam-se num dos cantos balcão. Alguns agitavam o papel que indicava que o café estava pago, mas ele de facto nem era preciso. Uma oura empregada enfrentou-nos a todos depois de um suspiro profundo.

- Café para todos, não é? - Perguntou de forma quase retórica.

Um a um, ou dois a dois, foi servindo toda a gente. Eu fui o último. Quando afastei o pacote de açúcar (que nunca uso) do pequeno pires, já a maior parte dos clientes abandonava a loja. Sem saber explicar porquê, sentia uma pequena frustração por ter sido deixado para trás. Sabia que tinha sido dos primeiros a encostar-me ao balcão mas, compreendendo a confusão do momento, optei por aceitar tudo passivamente.
Assim que dei o último gole e pousei a chávena, a empregada voltou à carga.

- Desculpe ter sido o último. Olhei para si e pareceu-me ser o mais pacífico de todos. Hoje já tive problemas que cheguem...
- Não se preocupe. Vamos todos no mesmo comboio, provavelmente, que só parte daqui a cinco minutos.

Não sei onde é que ela viu em mim algum sinal de pacifismo, mas sei que sem o perceber comuniquei com ela sem de facto querer comunicar. Quando me sentei na carruagem seis, lugar sessenta e oito, fiquei a pensar naquilo... e sorri.

Já agora, fiquem com um pequeno vídeo que fiz no concerto íntimo do guineense Bubakar Djabaté, na Associação Renovar a Mouraria. É uma prenda.

10.10.2014

os meus sapatos estão rotos

Às vezes dou por mim a olhar fixamente para os meus sapatos. Sento-me no sofá e, como não vejo televisão a não ser que tenha um filme específico em mente, os sapatos são objecto seguinte. Foi o que me aconteceu agora mesmo, enquanto tentava respirar um pouco pelo excesso de tarefas e coisas para fazer dos últimos dias. Os meus sapatos estão rotos, pensei.
Estão mesmo, e ainda não tinha reparado, apesar de os calçar e descalçar quase todos os dias (às vezes uso outros). Quando olho para eles dentro do meu próprio quotidiano, os meus olhos não são capazes de analisar nada. Sabem que eles estão ali para serem calçados e me protegerem os pés enquanto caminho e são incapazes de alcançar seja o que for para além disso. Só em momentos como o de hoje, em que tento parar e quebrar a rotina do mundo, é que consigo perceber que os meus sapatos estão rotos.
Por qualquer motivo, sempre achei que é uma capacidade mais feminina do que masculina, esta de perceber que os sapatos estão rotos. Acho que é por isso que os divórcios e as separações partem quase sempre delas e não deles. Não são um fim em si mesmo. São uma tentativa de calçar outra coisa qualquer.

10.08.2014

conversa 2114

Ela - Há muito tempo que não sinto interesse por homem nenhum e, assim de repente, sinto que estou bem. Não quero mais nada da vida.
Eu - Estás em paz?
Ela - Sim, é isso. Estou em paz comigo mesma...
Eu - Fixe, então.
Ela - Na verdade...
Eu - Na verdade o quê?
Ela - Na verdade estar em paz é a única coisa que me chateia um bocado e que me pode vir a fazer envolver com alguém.

10.07.2014

respostas a perguntas inexistentes (290)

Hoje de manhã passei por uma professora minha do tempo do liceu. Cumprimentei-a e ela demorou alguns segundos a aperceber-se de quem eu era. Provavelmente, por uma questão lógica, deduziu imediatamente que tinha sido minha professora, mas depois precisou de tempo para procurar e encontrar-me na longa lista de alunos dela.

- Eras aquele que estava sempre no canto lá atrás a tentar passar despercebido... - disse.

Concordei abanando afirmativamente a cabeça e, depois de me despedir dela, fiquei a vê-la a andar devagar até desaparecer na primeira curva da rua. De tudo o que eu fui no liceu, aquilo que lhe ficou na memória foi o facto de eu me refugiar quase sempre num dos cantos da sala. Depois apercebi-me que eu próprio não me lembro do nome dela, mas sei que ela costumava estar constantemente com uma esferográfica na mão a fechar e a abrir a tampa.
De tudo o que somos ou fomos para os outros, às vezes só resta aquilo que não somos nem nunca fomos para nós. Não faz mal, pensei. Acho que é isso que vai tornando o Amor possível, podermos escolher aquilo de que nos lembramos nos outros.

10.05.2014

pensamentos catatónicos (316)

O fim de qualquer Amor é uma despensa.
A minha máquina de café avariou-se. Preocupa-me metê-la no lixo, tanto por causa do seu valor comercial como pela ligação emocional que lhe tenho (sim, é possível ter uma ligação emocional com um objeto). Arrumo-a na despensa, onde todas essas preocupações vão morrendo devagar e, muito provavelmente, levo-a para o lixo daqui a um ano ou dois. Nessa altura já não me vai custar nada, porque entretanto deixou de fazer parte da minha vida.
Uma despensa não serve apenas para guardar aquilo que já não usamos ou só usamos de vez em quando. Serve, mais do que tudo, para aliviar. Pelo menos no meu caso.
Mal ou bem, vou tendo a minha casa mais ou menos arrumada, com as garrafas no sítio das garrafas, os livros no sítio dos livros, os discos no sítio dos discos e as panelas no sítio das panelas. É uma preocupação constante manter as coisas assim. A despensa é o sítio das despreocupações. É lá que está atirado tudo aquilo que não me preocupa, mas já preocupou.

10.03.2014

Os Lavradores do Mar



Este é o trailer do meu último filme, que é como quem diz que estou a tentar abrir uma porta para cumprir um sonho de sempre: fazer documentários. Foi por isso que passei alguns dias na Praia de Mira a filmar pescadores de Arte Xávega, para tentar pôr em pouco mais de vinte minutos aquilo que é um dia de trabalho de quem nos põe o carapau na mesa.
Na verdade, ontem mesmo juntei três ou quatro amigos em casa e decidi fazer mais algumas alterações de última hora. Vou fazê-las hoje e dar o processo por terminado. Por agora convido-vos a ver um pouco do filme...

10.02.2014

respostas a perguntas inexistentes (289)

À medida que os anos passam e vamos envelhecendo, as nossas memórias afastam-se e vão ficando cada vez mais pequeninas. É como se fossem objetos no espelho retrovisor dum automóvel em andamento que numa curva qualquer podem desaparecer para sempre. Às vezes apetece-me encostar e ficar a olhar para trás, na esperança de que alguma decida vir ter comigo, mesmo que apenas por alguns momentos.
Pelas minhas contas foi há vinte e seis ou vinte e sete anos que eu ganhei o hábito de, sempre ao fim da tarde, sair de casa e sentar-me num muro que ficava a uns dois quilómetros de distância. Não fazia mais nada do que ficar ali sentado a ver a vida a passar. Depois, quando a hora do jantar se aproximava, voltava para casa.
Nunca expliquei a ninguém, nem sequer a mim mesmo, por que motivo o fazia. Sei apenas que o fazia e que me sentia bem ao fazê-lo. Acho que sentia a capacidade de parar perante um mundo que continuava a mover-se indiferente a tudo. No fundo, sentia-me um observador, totalmente isolado e independente, como se fosse um cientista num laboratório a olhar para ratinhos brancos.
Os meus ratinhos brancos, claro, eram as pessoas que passavam por mim. Algumas em passo apressado, outras mais calmas e outras ainda que esperavam apenas pelo autocarro numa paragem que era mais ou menos concorrida.
Houve um dia qualquer em que a Joana se sentou ao meu lado. Quando digo ao meu lado, digo mesmo ao meu lado, naquilo que se pode considerar uma distância reservada a pessoas íntimas. A mão dela tocou na minha, que por sua vez abraçava uma das esquinas do muro. No princípio não disse nada, mas depois admitiu que estava curiosa por me ver sentado ali quase todos os fins de tarde. Não me via a andar nem depressa nem devagar, muito menos a entrar num autocarro. Apercebi-me que para ela, que vivia num dos apartamentos mesmo em frente e a janela do quarto dela dava para o muro onde eu me sentava, eu era o ratinho branco.
Vinte e seis ou vinte e sete anos é uma quantidade de tempo que não me parece tão grande como quando eu me sentava nesse muro, o que é natural. Como tinha vivido menos, o tempo que passava era sempre gigantesco, pelo menos quando comparado com a minha reduzida vida. 
Ainda assim, esta memória estava a desaparecer. Só a recuperei num jantar que fiz a semana passada com a Joana, que ainda é minha amiga hoje em dia, depois de alguns períodos em que estivemos mais próximos e outros mais afastados. Ela lembrava-se de alguns pormenores, eu de outros, e acabámos por reconstruir um dos pequenos cantinhos da minha vida. Da dela também, claro.
A memória coletiva é sempre mais eficaz e certeira do que a singular. É por isso que, quando encosto o automóvel para olhar para trás e tentar recuperar alguma coisa perdida, gosto de levar alguém ao meu lado.