11.30.2012

não desisto!



Esta semana não fiz muito mais do que procurar a Luna, a minha cadela que desapareceu no passado dia 25. A pé, já percorri uns cinquenta quilómetros ou mais. Na verdade perdi a conta. São cerca de doze horas a caminhar todos os dias, embora ontem e hoje não tenha conseguido manter o ritmo dos primeiros dias.
Já conheci várias pessoas que, admito, me revelaram um mundo novo: o daqueles que fazem tudo o que podem por um animal. A S., por exemplo, que encontrei numa das ruas do Porto exactamente à procura da minha cadela, e que me reconheceu pelo canto do olho. Mais ainda, hoje parei para beber umas cervejas num café perto da estação de metro do Viso, onde deixei um cartaz, e os donos prometeram fazer uma busca na zona de Custóias. São apenas exemplos duma solidariedade que eu desconhecia.
A Luna tem cinco cachorros em casa, que serão entregues aos donos prometidos em breve. Têm sido tratados da melhor forma possível por mãos humanas, as minhas e as da Raquel. Vou fazer todos os possíveis para que passem alguns dias com a mãe.
Este post é só para dizer obrigado a toda essa gente, incluindo aqueles a quem não consegui responder nem cheguei a conhecer. Obrigado. Eu não desisto!

pensamentos catatónicos (286)

agarra-me senão eu mato-o

As mulheres tiveram a inteligência de nunca se armarem em fortes. Nunca se metem à frente de um homem para o proteger de falsas ameaças, nunca contam histórias em que salvaram gatinhos indefesos das garras de  enormes lutadores asiáticos, nunca se oferecem para levar um tipo a casa ao fim da noite. São inteligentes, de facto, e têm uma vida mais fácil no que diz respeito às lágrimas. Nunca ninguém ouviu dizer que uma mulher não chora.
Quando uma mulher chora apenas se torna mais sensual, mais delicada e sensível. Enfim, mais mulher. Já os homens, por serem estúpidos, têm uma vida difícil. Quando um gajo chora perde toda a sua masculinidade. Passa a ser um totó, um menino da cidade, um ser que habita no limbo dos géneros. Nem sequer é bem homem.
Se uma mulher se afasta duma zaragata de rua, é por ser calculista e por pôr a razão à frente da emoção. Um homem, no entanto, é sempre cobarde. Assim, quando um tipo não se quer meter em confusão, o mínimo que pode fazer é pedir o clássico "agarra-me senão eu mato-o!", na esperança de que realmente alguém o agarre. 
O mais extraordinário de tudo isto é que ontem vi uma cena destas: um homem a pedir para ser agarrado antes que desse uma sova noutro. Quem o agarrou foi uma mulher, esse ser frágil que chora por tudo e por nada, que não tem força nenhuma e, imagine-se, precisa constantemente de ser defendido por terceiros. Para meu espanto, conseguiu. Eu olhei para o homem agarrado e acho que não conseguiria.

conversa 1966

Ela - O meu marido, cada vez que vê um homem muito simpático, pensa logo que é um gay a tentar engatá-lo.
Eu - Isso é preconceito a mais. Ainda pensa que eu ando a tentar engatar-te a ti, só porque sou simpático contigo.
Ela - Não, isso não é um problema. Ele diz que tu és dos gajos mais antipáticos que já conheceu.

11.29.2012

conversa 1965

Ela - O meu marido está sempre a queixar-se que não temos sexo suficiente.
Eu - E não têm?
Ela - Para mim chega o que temos. Acho que não vemos o sexo da mesma forma...
Eu - Da mesma forma?!
Ela - Sim, da mesma forma. Para mim o sexo é luxúria, só faz sentido se eu estiver nos píncaros da libido  Para ele, e acho que para os homens em geral, é uma sensação de conforto. Mesmo que não estejam muito entusiasmados, precisam duma certa regularidade sexual.
Eu - Ah! Compreendo.
Ela - Ele não, não compreende...

respostas a perguntas inexistentes (236)

talvez amanhã

Sem perceber como, a Ana já perdeu a conta aos dias em que espera ansiosamente por um dia melhor. O seguinte, se possível. Agora tornou a dizer-me que talvez amanhã. Talvez amanhã consiga dormir até mais tarde, talvez amanhã tenha um dia no emprego sem pressões, talvez amanhã consiga dez minutos para ir ver o Sol pôr-se na praia, talvez amanhã encontre alguém.
"Alguém" é um pronome indefinido, digo-lhe eu. Tão indefinido quanto esse "talvez amanhã". Termos a vida indefinida pode ser uma de duas coisas: ou uma maravilha ou um pesadelo. A indefinição nunca é assim assim. A indefinição no trabalho, no Amor e nos nossos pequenos vícios é apenas a vida a dizer-nos que está viva. Que ainda não morreu.
Quando estamos sós, lutamos todos os dias para definir a nossa solidão, se possível terminando com ela. Quando estamos apaixonados e Amamos alguém, lutamos para que o Amor não se defina com o tempo que passa. O amor não se pode definir nem passar a ser corriqueiro. É um snobe, o sacana, e quer sempre ser a coisa mais importante da vida de cada um.
Talvez amanhã.

11.28.2012

respostas a perguntas inexistentes (235)

trata-me aí dum assunto

Aqui há uns dias uma amiga pediu-me para fazer um trabalhinho por ela. Nada de especial. Ela não tinha coragem de devolver um ferro de passar a roupa que se avariou logo nos primeiros quinze dias de uso, deu-me o papel da garantia e pediu-me para ir eu. Nada mais fácil, mas compreendo que em determinadas alturas da vida nos falte forças até para as coisas mais simples, por isso fui.
O assunto ficou rapidamente resolvido e voltei para casa feliz da vida com o dinheiro no bolso para lhe entregar. Entretanto decidi tomar um café, daqueles que se tomam não por causa do café em sim, mas sim porque sabe bem estar numa mesa rodeado de pessoas que não nos conhecem de lado nenhum, durante algum tempo e sem pensar em nada. É nesses momentos que algumas ideias nos assaltam abruptamente.
Era bom que o Amor funcionasse assim, através de terceiros, mas não funciona. Imagino-me a pedir a uma amiga que fosse ali falar com o objecto da minha paixão para lhe dizer que eu a Amava. Imagino-a a voltar com o assunto tratado. Não é assim.
Podemos pedir a um amigo que nos trate do IRS, que nos vá devolver a uma loja uma compra da qual nos arrependemos, que nos compre bilhetes para um jogo de futebol ou que vá pagar a conta da água. Não lhe podemos pedir que transmita a alguém, por nós, que estamos apaixonados.
Essa é barreira que só a vida nos ensina a ultrapassar, transformar o verbo Amar num assunto que se vai tratar porque tem que ser tratado. A mim, por exemplo, custou-me bastante a aprender, mas a verdade é que nunca fui bom aluno em nada.
Paguei o café e fui entregar o dinheiro à minha amiga, que não vive assim muito longe de mim. Ela agradeceu-me e ofereceu-me um café, que eu recusei porque já tinha tomado. Acabámos os dois a beber umas cervejas numa esplanada da Costa Nova. Ela contou-me todos os seus avanços e recuos no Amor. Não me pediu para tratar de nada.

11.27.2012

conversa 1964

(ao telefone)

Ela - Boa tarde. Vi um anúncio num poste de electricidade sobre uma cadela desaparecida.
Eu - E?
Ela - Era para saber se me dá um dos cães pequeninos.
Eu - Já estão prometidos.
Ela - Todos?
Eu - Sim.
Ela - E aceita reservas, caso haja alguma desistência?
Eu - Não. Agora não ando com cabeça para isso...
Ela - Podia ao menos apontar o meu nome...
Eu - Não vale a pena. Se houver uma desistência, já tenho lista de espera.
Ela - Caramba! (desliga)

11.26.2012

respostas a perguntas inexistentes (234)

Por causa da minha cadela ter desaparecido, ontem andei entre as nove e meia da manhã e as onze da noite à procura dela. Com um cartaz na mão, ia perguntando às pessoas que passavam por mim na rua se a tinham visto. Quase todas as pessoas que pararam para realmente olhar para a fotografia, que me pediram o número de telefone para o caso de encontrarem a cadela e me desejaram sorte, eram pessoas que levavam um cão a passear.
Nunca tinha reparado que as pessoas que têm cães formam um grupo com um denominador comum tão forte. Não gostam apenas do seu cão, gostam de todos os cães. Assim, a partir do meio da tarde comecei a perguntar apenas a pessoas que tinham cães. Na Senhora da Hora não são poucas, aquelas que andam com o seu companheiro canino na rua.
Obviamente não estou a dizer mal das pessoas que não têm animais. Eu próprio nunca tive até há bem pouco tempo. Estou a dizer que descobri recentemente esta ligação entre pessoas e que a percebo bem. Perceber bem um certo tipo de ligação entre uns e outros, não é para todos. Houve pessoas que me disseram apenas que não tinham visto a minha cadela, mas todos os que levavam cães pela trela me desejaram sorte. É uma espécie de pancadinha nas costas ou um "eu sei o que estás a sentir".
De facto estou a sentir-me profundamente triste e ainda bem que há pessoas que entendem isso. No Amor, a coisa não é muito diferente. Quando alguém está deprimido porque, por algum motivo, o seu Amor acabou, uns entendem o que se passa, outros não.

11.25.2012

urgente

A Luna, a minha cadela, assustou-se hoje com uma mulher que passou por ela. Penso que deve ter apanhado bastante dos donos anteriores porque tem pânico de tudo o que é pau, vassoura ou guarda-chuva. Escapou-se à própria trela e fugiu. Foi perto da estação da Senhora da Hora, em Matosinhos e eu estou um bocado desesperado porque ela tem cinco filhotes em casa à espera dela.
Se alguém a vir, agradeço que me telefone, por favor. O meu telefone é o 934168870. 

11.24.2012

respostas a perguntas inexistentes (233)

às compras

Estou numa longa fila de carrinhos de compras a pensar que não deve ser nada fácil ser caixa de supermercado. É uma mulher ainda jovem que está ali, provavelmente há horas, a passar o código de barras de milhares de produtos. De vez em quando olha disfarçadamente para todos os que esperam a sua vez. Alguns olhares de clientes mais impacientes mantêm-se fixos na direcção dela, como que a culpá-la pela demora, e ela defende-se desse ataque permanente com um sorriso forçado.
À minha frente, duas mulheres retiraram a Nova Gente do expositor de pastilhas elásticas, chocolates e revistas. Vão folheando páginas de notícias inúteis para não terem que folhear mentalmente a própria vida. É o que os seus maridos fazem e por isso estão em silêncio. Um deles começa já a pôr as suas compras no tapete rolante e ela interrompe a leitura, mantendo os dedos a marcar a página.

- Olha que as coisas pesadas vão primeiro. Os legumes são no fim. - diz.
- Se ajudasses em vez de ler essa merda. - resmunga ele.

Ela não liga. É fácil perceber que há muito tempo que aquele casal não tem uma conversa decente. Estão juntos fisicamente, separados em tudo o resto. E ele vai atirando as coisas para o tapete como se as quisesse aleijar.
Mais atrás, outro homem acordou do que parecia ser um sono profundo. A mulher mostra-lhe uma página qualquer e ouço-a falar sobre um bebé que é lindo.

- É escura e tem o cabelo loiro. Que linda!
- O pai dela é aquele jogador de futebol, não é? - Pergunta ele.
- É. Gostava de ter uma menina assim.
- Não temos dinheiro.

Faz-se de novo silêncio. Ela fecha a revista e coloca-a com precisão onde a tinha deixado. Os seus dedos percorrem todos os chocolates e agarram uma embalagem de Snickers

- Isso é para emagreceres? - Pergunta ele.
- Preciso dum chocolatinho. - responde ela e atira a embalagem para dentro do carrinho.

Ir às compras é uma tarefa deprimente, penso eu. Os meus olhos desviam-se e voam sobre aquele espaço fechado como um pássaro tonto, ansioso por sair dali. Pousam alguns segundos depois numa mulher da fila ao lado da minha. Deve ter uns trinta e cinco anos, mais coisa, menos coisa. As compras dela têm, entre embalagens de cereais, fruta e carne, algumas garrafas de vinho, uma de uísque e uma caixa de preservativos. Vejo-a sorrir e é o primeiro sorriso a sério que vejo nesta tarde. Um homem aproxima-se e abraça-a. Depois beija-a prolongadamente. Talvez tenha ido à casa de banho.
A vida é uma coisa estranha, penso. Se não nos damos ao trabalho de passar por ela, é ela que passa por nós a uma velocidade estonteante. Quero ser dos que seguem pela primeira opção. Procuro a minha companheira. Beijo-a. Começo a pôr as compras no tapete rolante.

11.23.2012

conversa 1963

Ela - Esta vai ser a primeira passagem de ano em que estou divorciada.
Eu - Isso preocupa-te?
Ela - Preocupa-me passá-la sem os meus filhos...
Eu - Compreendo. Eu telefono sempre à minha filha nessa noite, quando não estou com ela.
Ela - Eles não têm telefone e tenho quase a certeza que o meu ex-marido não vai atender.
Eu - Não vai atender?! Porquê?
Ela - Porque me quer irritar.
Eu - Ele não faz isso de certeza. Eu conheço-o e sei que não faz. É um gajo porreiro.
Ela - Eu também sou porreira e fazia-o sem problema nenhum.

pensamentos catatónicos (285)

O capitalismo é a antítese do Amor.
As pessoas casam-se para pagarem a conta da luz, da água e do gás a meias. Dizem que a vida vai mais ou menos quando conseguem manter a prestação do carro e da casa.  Sorriem quando lhes é perguntado se têm as contas em dia, abanam os ombros descontentes quando lhes és perguntado se ainda estão apaixonados um pelo outro.  Do Amor pode-se abdicar, do pagamento das contas não.
O Amor até é dispensável, a contabilidade é que não. Somos geridos com falta de Amor e é com ele que pagamos a factura dessa asneira. O problema é que é mesmo assim porque escolhemos viver assim.
Os Amantes deixaram de perceber que a forma como decidimos distribuir a riqueza que um país produz é uma concepção. O Amor, pelo contrário, é um impulso natural. Apaixonamo-nos e pronto. Nem sequer sabemos porquê.
Pelo contrário, sabemos muito bem porque é que pagar as contas é difícil. Decidimos que nesta vida é cada um por si e outros que se fodam. A não ser, claro, que o outro esteja casado connosco.  Mas aí não é um Amante, é um sócio de capital. Podíamos ter uma lógica em que todos pagavam as contas de todos. Pelo menos aquelas que são essenciais: a da água, a do gás, a da electricidade, a da saúde, a da educação e a da mobilidade. Ficávamos todos com disponibilidade para nos apaixonarmos. Mas não.
Cada um por si significa que ninguém é por ninguém, e que um destes dias ninguém consegue pagar contas. Quando esse dia chegar, também ninguém conseguirá Amar.

11.22.2012

conversa 1962

Ela - Diz-me sinceramente, achas que eu ainda sou minimamente atraente?
Eu - Não.
Ela - Eu sabia.
Eu - Quer dizer, não és minimamente. És muito atraente, era o que eu queria dizer.
Ela - Ah! É que estava quase, mas mesmo quase, a despejar este caldo verde a ferver por ti abaixo.
Eu - Então e o "sinceramente"? Não me pediste para ser sincero?! E se eu achasse mesmo que não?
Ela - A sinceridade é uma coisa muito relativa.

conversa 1961 e respostas a perguntas inexistentes (232)

Não sou, por norma, muito falador. Pelo menos é o que eu acho. Como costumo dizer a mim mesmo, falo de menos e escrevo demais. Até me considero uma pessoa tendencialmente tímida. Há, no entanto, uma excepção: as conversas a dois.
Na verdade, considero que a minha sanidade mental depende muito das conversas a dois. Prefiro conversas a dois do que a três, quatro ou cinco. Não sei porquê, mas a capacidade que eu tenho de me concentrar numa conversa e, portanto, de me interessar por ela, é muito maior quando tenho apenas um interlocutor.
É por isso que adoro receber uma visita em casa ou, por outro lado, tendo a visitar mais os meus amigos que vivem sozinhos. Um amigo, uma garrafa de vinho ou de uísque e algum pão ou chocolate, e tenho uma noite por bem dada.
É verdade que esta minha característica, que não é boa nem má, também teve sempre uma enorme importância nos meus relacionamentos amorosos. Uma relação com uma mulher que gosta de falar a dois, por mim, é normalmente mais fácil do que com uma que até pode ser mais social e, por isso, não dispensa uma noite sem um grande grupo de amigos à sua volta. Acreditem, sei-o por experiência própria.
Isto quer dizer também que, na idade que atravesso, considero-me um privilegiado por ter feito e mantido alguns amigos que são exactamente como eu neste aspecto. Não são muitos, mas são os suficientes para eu manter equilibrada a balança da solidão e do convívio. Há uns dias, por exemplo, visitei uma amiga minha que quase nunca sai de casa por opção própria. Visito-a mais a ela do que ela a mim, talvez por isso mesmo. Depois duma noite inteira a conversar, deviam ser umas três da manhã quando ela me pediu silêncio.
No princípio até pus a hipótese dela se estar a sentir mal. Observei-a com atenção enquanto ela dividia irmãmente o que restava duma garrafa de Vila Ruiva Reserva 2010 (ela só bebe vinho alentejano) e cheguei à conclusão que não. Dei um gole no copo e encostei-me para trás no sofá.

- Eu acabei de te explicar porque é que me divorciei do meu marido. - disse ela.
- Acabaste, sim. - confirmei.
- Disse-te que passámos quatro anos, eu e ele, a tentar apaixonarmo-nos um pelo outro e que, passado esse tempo, chegámos à conclusão que não tínhamos conseguido.
- Eu percebi. - confirmei de novo.
- És a primeira pessoa a quem conto isto e que não faz nenhuma observação parva, do género: "tanto tempo para perceber que não estavam apaixonados?!".
- Não acho que seja assim tanto tempo. Além disso, acho perfeitamente normal insistirmos em tentar uma paixão com aqueles de quem gostamos muito. Já aconteceu a todos... - observei, numa tentativa de tornar o mais normal possível a coisa.
- Eu acho que só nos entendemos assim tão bem porque nunca há mais ninguém quando conversamos. - concluiu.

Fiquei a pensar naquilo para além daquela noite, até agora, momento em que escrevo este texto. É que às vezes, para alinhavar o meu pensamento, tenho que o escrever. Senão não sou capaz. Acho que ela tem razão e, sem o saber, explicou-me uma característica que eu tinha como minha.

11.21.2012

conversa 1960

(na casa dela, uma mosca a bater insistentemente no vidro da janela)

Eu - Às vezes apetecia-me ser mosca.
Ela - A mim também, para conseguir ouvir todas as conversas.
Eu - Eu estava mais a pensar em ser capaz de voar.
Ela - Ah! Não tens piadinha nenhuma.

11.20.2012

conversa 1959

(na casa dela)

Eu - Ena! Tens este vinil?! Não acredito!
Ela - Não acreditas, porquê?
Eu - Este disco é raríssimo. "10000 anos depois entre Vénus e Marte", do José Cid... espectacular. Consegues vender isto por uns cem euros...
Ela - Não é meu, é do meu ex-marido e ele está farto de mo pedir.
Eu - Ah! Então e não lho dás? Se eu fosse o teu ex-marido já tinha cá vindo buscá-lo.
Ela - Eu até dava, mas estou com medo.
Eu - Medo de quê?
Ela - Há uns tempos precisava duma base para a mesa, para pousar a panela quente do jantar, e usei esse disco. Ficou um bocado estragado...
Eu - Fizeste o quê?!?!?!?!
Ela - Eu sabia lá... um disco do José Cid... pensei que fosse mais uma porcaria dessas que ele se esqueceu cá em casa quando se foi embora.
Eu - Fizeste o quê?!?!?!?!
Ela - Estás a ver? É dessa reacção que eu tenho medo...

música

Às vezes passo música em minha casa para mim mesmo. Sento-me no sofá, ligo dois leitores de cd's à mesa de mistura e esta à minha amplificação doméstica. Normalmente acompanho este hobby com uma garrafa de vinho ou algumas cervejas.
Uma vez uma amiga minha apareceu em minha casa sem avisar, estava eu com todos os meus cd's espalhados à minha volta e a passar música para mim mesmo. Ela ficou surpreendida e perguntou-me se eu estava maluco.

- Talvez esteja mas, como gosto desta maluquice, não abdico dela! - respondi.

Nessa altura eu costumava passar música em alguns bares de Aveiro, normalmente o Clandestino Bar ou o Mercado Negro, mas uma vez por outra também no Riff. Nunca fui músico e nunca tive jeito nenhum para a música, para ser sincero. Apenas adoro ouvir. Por isso é que me faz impressão a forma como a maior parte das pessoas ouve música, ou seja, como um apêndice de outra actividade qualquer. Enquanto se lava a loiça, se conduz um automóvel ou se lê uma revista, por exemplo. É muito raro ver alguém que dedica parte do seu tempo apenas para ouvir música. Mais nada. É isso que eu gosto de fazer e é por isso que passo música para mim mesmo.
Nessa noite expliquei isto mesmo a essa amiga minha. Ela foi à cozinha buscar um copo e dividimos o vinho que bebíamos e a música que eu passava. Estivemos a noite quase toda nisto, com ela em silêncio a folhear as capas de alguns cd's que eu ia passando. Nunca lho disse, mas foi das melhores noites que tive na minha vida. Tanto, que nunca mais a esqueci.
A música é um pouco como o Amor. É para ser dividida por dois, mas em exclusivo e sem actividades paralelas. Hoje lembrei-me dela. Como infelizmente já não está entre nós, nunca lhe vou poder dizer que essa foi uma noite especial. Devia ter dito na altura. De qualquer maneira sinto uma necessidade enorme de passar os meus cd's. Vou fazê-lo no Clandestino, a partir das 22:30, tanto para mim como para quem lá quiser passar. É uma necessidade. Mais nada.

11.19.2012

respostas a perguntas inexistentes (231)

A Ana é uma mulher bonita. Como a conheço há alguns anos, já tinha reparado nisso muitas vezes. No entanto hoje, quando vi o seu reflexo na montra dum pronto-a-vestir, reparei duma forma diferente. Foi como se tivesse consciencializado pela primeira vez esse pensamento. Ali, do outro lado do vidro, a sua imagem misturava-se com a inquietante quietude dos manequins e ganhava vida. 
Por um momento percebi o motivo pelo qual me costumo apaixonar por aí, de vez em quando, como quem bebe uma cerveja ou acende um cigarro na rua. Uma mulher faz com que todos os outros se assemelhem, por um momento que seja, a manequins. É ela quem ri, é ela quem chora, é ela a única que provoca no nosso corpo uma resposta emocional. Todos os outros são apenas bonecos que vestem uma roupa qualquer.
Ela estava a vestir o casaco e o reflexo dos nossos olhares cruzou-se por uma fracção de segundo. Vi-a sorrir. Tínhamos acabado de tomar o pequeno-almoço e eu só estava à espera de me poder despedir dela, numa despedida que fosse mais do que um simples acenar de mão ou um "até à próxima". Acabou de vestir o casaco e abracei-a.

- Com que então achas que é uma trabalheira... - disse eu enquanto abria os braços para a deixar fugir como se fosse um pássaro a fugir da gaiola.

Ela tinha comido uma torrada e bebido um sumo de laranja natural, eu tinha-me ficado por um café expresso sem açúcar. Mesmo assim demorámos mais ou menos o mesmo tempo a ingerir os pedidos. Ela ainda come e fala tão depressa como quando a conheci, há alguns anos atrás, e saímos juntos durante duas ou três semanas.
Esteve a explicar-me porque é que nunca mais saiu com ninguém. É que dá uma trabalheira envolver-se emocionalmente com um homem. É o trabalho de lhe conhecer o passado, o trabalho de enfrentar tudo aquilo vai descobrindo que não se gosta nele, o trabalho de desenhar o futuro a dois.

- Sozinha é tudo tão mais fácil! - concluiu

Ia perguntar-lhe qualquer coisa, mas desisti. Perante a prenda que era estar a vê-la a vestir o casaco, não me ia dar ao trabalho...

11.18.2012

conversa 1958

(ao telefone)

Eu - Queres aproveitar o Sol e ir beber um fininho comigo?
Ela - Até gostava,, mas estou aqui com uma cena urgente.
Eu - Urgente?! Está tudo bem?
Ela - Sim, está tudo bem. É que estou a fazer um puzzle de quatro mil peças...

pelo fim da violência contra as mulheres

design: Catarina Leal

Sábado, 24 Novembro
MOB (travessa da Queimada, nº33 Bairro Alto)
18h workshop de defesa pessoal com Sakura Mónica
22h30 Rita Redshoes e dj Miss Sara

Domingo, 25 Novembro
15h Marcha pelo fim da violência contra as mulheres com:
Dança com Orchidaceae
Teatro com O Bando
Dj Soulflow

11.17.2012

casamento


Já não me lembro porque é que disse aquilo à minha mulher. Talvez o elevador do hotel me tenha dado a sensação de que o mundo não ouviria, que aquilo ficaria um segredo entre nós. Sei lá, que talvez aquela ideia absurda nem sequer ousasse sair dali, daquele pequeno compartimento que mais não faz do que transportar pessoas de um andar para outro. Sei que ela nem sequer respondeu e o silêncio que se fez a seguir foi, talvez, o silêncio mais pesado que senti na minha vida inteira.

-Talvez me venha a arrepender de ter casado contigo.

Admito que a minha primeira preocupação foi ter estragado, eventualmente, a noite de núpcias. Não que naquela altura andasse propriamente com a libido no máximo, mas sempre tinha tido essa ilusão de ter sexo num hotel caro com uma mulher vestida de noiva.
Na verdade, eu tinha casado com ela porque estava completamente apaixonado e porque tínhamos uma vida sexual bastante boa. Casei, portanto, sem a mínima dúvida sobre o que estava a fazer. Mas depois, durante o casamento, e por causa dum pequeno gesto que não me saiu mais do pensamento, pensei que talvez me pudesse arrepender.
Tinha chegado a hora de irmos falar com todos os convidados, um por um, mesa por mesa, e eu abracei-a como sempre tinha feito durante os anos de namoro. Ela tirou o meu braço dos ombros e cruzou-o com o dela. Em vez de irmos abraçados, fomos apenas de braço dado.

Há convidados respeitáveis. - disse – Portemo-nos como pessoas casadas.

Foi a primeira vez que pensei que não conhecia totalmente a mulher a quem tinha acabado de prometer passar o resto da minha com ela. Talvez houvesse uma mulher antes do casamento e outra depois do casamento, como muitos amigos meus já casados, alguns até já divorciados, me tinham avisado. Por um segundo não a reconheci nem no seu comportamento, nem sequer no seu timbre de voz.
Ela sentou-se num dos sofás da suite do hotel. Numa das paredes estava pendurado um quadro para o qual eu não conseguia deixar de olhar. Era uma pintura assumidamente abstracta mas que, pelo menos para mim, se assemelhava como figurativa. Um borrão que desde o primeiro momento me parecera um bando de pássaros a levantar voo numa floresta densa, talvez por ter havido um disparo duma arma.

Nem sequer vais olhar para mim? - Perguntou.
- Estou a contar fazer mais do que olhar. - respondi sem tirar os olhos do quadro.

Ela não se riu. Pelos visto, o segredo que eu lhe contara no elevador tinha passado para o nosso quarto de hotel, talvez até para a nossa vida. Achei melhor enfrentar a situação que eu próprio tinha criado, em vez de contorná-la como era meu hábito.

Estou com medo de não saber com quem casei.

Enfrentei-a olhos nos olhos. Ela tinha uma expressão nova, como se de repente se tivesse transformado numa estátua zangada. Eu próprio me assustei e decidi mudar de estratégia. Lancei-lhe um anzol, algo a que ela pudesse responder facilmente, para ver se aquele momento de tensão acabava. Dizendo-lhe o que sentia duma forma mais suave do que a realidade.

Não sei o que se passou comigo. Fiquei com medo que tu mudes. Na verdade fiquei com medo de te perder de repente. Nem sei bem porquê.

A estátua voltou a ser pessoa. Aproximou-se, segredou-me que eu era um tolinho e fizemos Amor. A paz tinha voltado. No entanto, cinco minutos depois de ter casado, já me sentia preso a algo maior que o próprio casamento. 

11.16.2012

respostas a perguntas inexistentes (230)

Lembrei-me hoje duma história que uma vez um quase amigo me contou. Digo quase amigo sem querer ser irónico. É que era isso que ele era de facto. Nunca falei com ele a não ser num dos cafés de Aveiro que eu frequentava quando era novo, e por isso sempre o considerei uma companhia de circunstância. Enfim, um quase amigo. 
Bem, mas a história que ele me contou, há já muito anos, tinha a ver com um pesadelo de que ele nunca mais se esquecera. Estava a morrer de sede e desidratação no meio dum deserto qualquer, deitado sobre a areia quente que lhe queimava a pele. Em desespero, mesmo sendo ateu, pôs-se a pedir a Deus que o ajudasse e fizesse chover, o que veio a acontecer. Só que choveu tanto que ele acordou desse pesadelo quando estava prestes a morrer afogado.
Lembro-me que não tive nenhuma reacção quando ele me contou isto. Devo ter dito apenas qualquer coisa como "fixe!" e pedido mais duas cervejas, uma para mim, outra para ele. A verdade é que nunca mais me esqueci da história. Isto é, não é que me lembre dela todos os dias, mas de vez em quando lá me vem à cabeça como se tivesse sido contada ontem e, normalmente, por causa de situações que têm a ver com mulheres, Amores e desAmores.
Hoje, como comecei por dizer, foi um desses dias e contei-a a um velho amigo que encontrei no Porto por acaso. Eu já tinha andado a pé uns sete ou oito quilómetros e estava ansioso por uma cerveja quando o vi, pelo que o convidei imediatamente para entrar no café mais próximo. Fiquei calado a saborear e decidi dar-lhe espaço para dizer o que quisesse.

- Então, como vai a vida? - Perguntei.

Foi como se ele estivesse à espera que alguém lhe fizesse esta pergunta há anos. Começou a falar ininterruptamente e eu fui ouvindo enquanto dava goles na minha Sagres preta. A certa altura disse-me que se tinha casado e divorciado, no espaço de três meses, com uma mulher alemã que conheceu durante o Verão numa praia qualquer. Apaixonou-se muito por ela, mas como ela fazia tudo o que ele queria fartou-se num instante e pediu-lhe o divórcio. Eu fiquei sem saber o que dizer, mas para preencher o silêncio que entretanto, e de forma inesperada, surgiu, contei-lhe este pesadelo do meu quase amigo.

- Fixe! - disse ele. 

E pediu duas cervejas. Uma para mim, outra para ele.

11.15.2012

um mundo de palhaços


Que me lembre, usei gravata duas vezes na vida. A primeira foi quando me casei e, entretanto, já estou divorciado. A segunda foi quando fui a um jantar duma grande empresa para a qual ia começar a trabalhar e, entretanto, já estou desempregado.
Nunca me dei bem com gravatas, é verdade, nem sequer com camisas, que são essenciais para poder andar de gravata. Dá tudo demasiado trabalho a passar a ferro e, além do mais, a gravata não serve para nada. Pelo menos era o que eu pensava, até ver este anúncio dos anos 70 da Van Heusen.
Afinal, as gravatas servem para mostrar às mulheres que este mundo é dos homens (show her it's a man's world) e que elas se devem ajoelhar perante eles mesmo quando lhes levam o pequeno-almoço à cama.
Às vezes a publicidade não pensa nem um bocadinho nos efeitos que pode ter, e tem de facto, na sociedade. Este é um caso gritante, até porque a gravata da Van Heusen é tão foleirona que podia ser usada por um palhaço de circo, com calças curtas, sapatos grandes e nariz vermelho. Ninguém estranharia e, nesse caso, poderíamos dizer que este é um mundo de palhaços. Talvez seja verdade.

11.14.2012

conversa 1957

Ela - Hoje rasguei as fotos todas em que estava com o meu ex-marido.
Eu - Rasgaste?! Nunca me passou pela cabeça fazer tal coisa. As minhas fotos com a minha ex-mulher sempre são uma recordação...
Ela - Ah! As minhas também são. Rasguei-as mas só pus no lixo a parte em que ele estava.

11.13.2012

conversa 1956

(na minha casa)

Eu - Vou beber uma Brasa. Queres?
Ela - Uma Brasa?! Que é isso?
Eu - É uma marca de cevada. Dantes tinha uma publicidade na tv que dizia: "parece café mas não é / é Brasa, satisfação / Brasa é a bebida que aquece o coração".
Ela - Acho que me lembro. Já devias ter aprendido alguma coisa com isso.
Eu - Aprendido com o quê?
Ela - Nem tudo o que parece uma brasa, é o que realmente parece.
Eu - Onde é que queres chegar?
Ela - Aí mesmo ao que te acabei de dizer.
Eu - Às vezes não percebo onde queres chegar.
Ela - Eu acho que nunca percebes.

respostas a perguntas inexistentes (229)

Estava numa fase da minha vida em que não recebia muitas chamadas pelo telefone nem muitas visitas em casa. Era raro. Não tinha namorada e a minha vida social anda muito perto do seu nível mais baixo de sempre.
Lembro-me que nesse dia almocei esparguete com tomate e bebi um copo de vinho, uma refeição habitual, quando estou sozinho em casa. Pus a água a aquecer e, quando começou a ferver, uma colher pequenina de sal e o esparguete lá dentro. Contei exactamente onze minutos a partir dessa altura porque sei, por experiência própria, que é o tempo ideal de cozedura no meu fogão e com a minha panela.
Como sempre também, preparei o tomate à parte. Fui ao congelador buscar três deles congelados, pelei-os, cortei-os em pedaços pequenos e atirei-os para uma pequena frigideira onde já tinha um fio de azeite a aquecer.
Cozinhar sempre me deu uma noção de normalidade, porque normalmente faço-o como se fosse um robô. Repito todos os gestos e tempos em todos os pratos, pelo menos aqueles que preparo com mais regularidade. Aliás, cozinhar é algo que gosto de fazer precisamente quando sinto que a minha vida está a fugir dos eixos e, consequentemente, tenho que lhe dar uma injecção de normalidade.
Nesses dias cozinho da forma que acabei de descrever e faço todos os possíveis por não sair de casa. O défice de normalidade dá-me a capacidade de, por exemplo, ter vontade  de ficar a olhar para qualquer um dos quadros que tenho nas paredes durante vários minutos seguidos. Acho que já cheguei a ficar várias horas, com pensamentos que escapam ao meu consciente. Não que sinta alguma coisa de especial por algum deles, mas sim porque eles fazem parte do meu dia-a-dia. Também leio livros que já li, vejo filmes que já vi ou ouço repetidamente as mesmas músicas.
Deixei a louça suja em cima do balcão da cozinha, amontoada sobre a dos três ou quatro dias anteriores, e fui para a varanda tomar café. Numa das janelas do prédio em frente ao meu, uma mulher punha a roupa a secar. Nunca tinha falado com ela, mas já tinha percebido que passava as tardes fechada em casa com um filho muito pequeno, que às vezes trazia à janela e agia como se lhe estivesse a mostrar o mundo pela primeira vez. Por isso mesmo, quando reparei numa peça de roupa que deixou cair, disponibilizei-me para ir buscá-la e entregá-la.
Não fiz isso com nenhuma intenção especial, nem sequer para me mostrar mais ou menos simpático. Acho que foi mesmo apenas uma questão racional. Eu estava sozinho e sem nada para fazer, ela estava com o filho pequeno em casa e por isso teria pejo em sair à rua. Mesmo assim, quando ela me convidou para entrar, aceitei com entusiasmo.
Disse-me que se sentia muito só porque o marido dela era camionista e passava muitos dias seguidos fora de casa. Passámos a tarde inteira na conversa e, depois de eu ir a minha casa buscar duas garrafas de vinho, jantámos juntos. Quando chegou a hora de ela deitar o filho eu despedi-me e saí, mesmo com a insistência dela para eu ficar mais um pouco.
Senti que se ficasse ia acabar por surgir uma oportunidade de nos abraçarmos, beijarmos e talvez dormirmos juntos. Arrependi-me assim que fechei a porta do prédio e senti a estalada do ar frio da rua, mas continuei a andar. Em minha casa tornei a ir para a varanda, desta vez dissimulado pela noite. Acabei por adormecer a olhar para uma janela vazia.

11.12.2012

conversa 1955

Ela - O meu filho está sempre a falar daquela série que viu na tua casa uma vez, quando fui jantar contigo.
Eu - Os Thunderbirds?
Ela - Sim, é isso. Emprestas-me?
Eu - Empresto. Acho fixe o teu miúdo gostar dessa série. Foi feita nos anos sessenta...
Ela - E depois? Eu - Hoje em dia há tantos filmes em 3D para crianças, tão bem feitos, que acho fixe o teu filho gostar duma coisa feita com bonecos há quase cinquenta anos. Mesmo o pessoal da minha idade não costuma gostar nada daquilo.
Ela - Suponho que isso é normal. Eu também fui feita nos anos sessenta, tenho quase cinquenta anos e o pessoal da tua idade não costuma gostar nada de mim.

11.09.2012

coisas que fascinam (155)

falta de ar

Estou parado numa estação qualquer entre Aveiro e Lisboa Santa Apolónia. Sempre que viajo de avião cedo facilmente o lugar à janela. Tirando a primeira vez que voei, ainda era bastante novo, nunca tive grande necessidade de ir a olhar para as nuvens lá fora. Já quando ando de comboio, adoro ir a ver as casas e principalmente as pessoas lá fora.
Alguns pingos de chuva, poucos, riscaram o vidro numa diagonal provocada pela velocidade da composição. Por trás deles surgem abraços e beijos entre os passageiros que acabaram de sair e aqueles que os esperavam. Acho piada. Imagino duas equipas de râguebi a correrem uma contra a outra para acabarem aos abraços e beijos. Afinal de contas, foi mais ou menos isso que aconteceu.
Depois as pessoas separam-se novamente e caminham, normalmente em grupos de dois, para o seu destino. Vejo muitas mãos dadas e ainda mais sorrisos. Sobra um abraço que ainda não se desfez. Um homem careca, de camisola vermelha, e uma mulher morena um pouco mais alta do que ele. Já tive daqueles abraços. São tão bons.
São os abraços de quem sabe que Ama e que é Amado, mas para cujo Amor o que se sabe não chega. Não é suficiente. Precisa-se do toque da mesma forma que se precisa de respirar. Por isso mesmo é que aquele abraço ainda não se desfez. É um abraço de que estava com falta de ar. 

respostas a perguntas inexistentes (228)

o homem que tirava a camisa pelos amigos

Acho que me enganei, durante grande parte da minha vida, sobre essa noção comum que é ser simplesmente amigo de alguém. Talvez por causa de expressões como aquela que diz que se tira a camisa por um amigo. Lembro-me de a ouvir, por exemplo, relativamente a um homem que frequentava um café mesmo ao lado da casa onde cresci. Ouvi dizer que ele, durante a sua vida, tinha provado que era capaz de tirar a camisa pelos amigos. Ganhei-lhe respeito mesmo sem o conhecer, mas passei a estranhar a sua condição.
Era um homem só, tão encolhido quanto envelhecido, envolto numa enorme nuvem de solidão. Cheguei a pensar que eram os pequenos copos de bagaço, que bebia de forma trémula, que o mantinham vivo. Eu devia ter uns doze ou treze anos e fiquei com uma enorme curiosidade pela vida dele. Pelo pouco que sabia, para além de dar a camisa pelos amigos, tinha sido um activo revolucionário antes da Revolução de Abril e torturado várias vezes nas cadeias da PIDE.
Houve uma tarde em que eu estava a ler um livro nesse café (para quem conhece Aveiro, estou a falar do Convívio há cerca de trinta anos) e ele estava, como habitualmente, a beber alguns bagaços e a ser devorado por cigarros sôfregos, que fumava uns atrás dos outros como se quisesse antecipar a própria morte. O silêncio sepulcral dessa tarde foi invadido por gritos dum novo cliente, completamente alterado, que entrou no estabelecimento a chorar e a partir os cinzeiros de vidro que se encontravam nas mesas. Os empregados chamaram imediatamente a polícia e, em grupo, agarram-no e mantiveram-no preso numa cadeira.
Antes que a polícia chegasse, vi o homem capaz de tirar a camisa pelos amigos levantar-se, acalmar todos os presentes, e pedir para ir lá fora dar uma volta com aquele suposto tresloucado. Lá acabaram por soltá-lo e saíram os dois para a rua. Eu continuei a ler.
Já não me lembro muito bem, mas voltaram os dois, passada talvez um hora. Sentaram-se à mesma mesa a conversar. Tudo estava calmo e o café acabou por ser indemnizado pelos cinzeiros partidos. A polícia, entretanto, já tinha chegado e partido sem poder fazer nada.
Esta história seria apenas mais uma história sem importância nenhuma, não fosse eu ter conhecido pessoalmente, no mesmo café uns dez anos mais tarde, esse meu ídolo de infância. Um dia, já nem sei bem como, acabámos na mesma mesa a conversar. No princípio senti-me um miúdo imberbe perante ele, mas fiquei imediatamente à vontade quando ele me disse para o tratar por "tu". Acabei por lhe contar tudo o que sabia dele, mesmo sem o conhecer, incluindo essa coisa pela qual ele era conhecido: tirar a camisa pelos amigos.
A resposta dele surpreendeu-me tanto, mas tanto, que nunca mais a esqueci.

- Eu não tenho amigos, tiro é a camisa por todos os homens que precisarem que eu o faça, porque são homens, tal como eu. Ser amigo é muito fácil do que isso. Se uma amizade não for fácil, então não é amizade.

Fiquei de boca aberta e ele continuou.

- É assim que gostamos duma mulher, quando a nossa relação com ela é fácil, então estamos a falar de Amor.

Por um momento percebi aquela permanente aura de solidão que o acompanhava. Tinha estado apaixonado por uma mulher que já morrera e não se sentia capaz de se renovar emocionalmente. Disse-mo com um enorme hálito a bagaço, mas às vezes é esse o hálito mais sincero que se pode encontrar no mundo. 

11.07.2012

respostas a perguntas inexistentes (227)

Parar

Se houve vezes em que andei na rua com muita pressa foram aquelas em que não tinha para onde ir, não tinha companhia nem tinha disponibilidade para contemplar fosse o que fosse. Quando não se tem nada, andando depressa parece que se tem tudo, pelo menos um destino e vontade de lá chegar.
Aprender a parar quando se está andar depressa demais para lugar nenhum é uma coisa que vem com o tempo. A mim, para além do tempo, foi uma mulher que mo ensinou. Foi por isso que nunca mais me esqueci dela.
Um dia pôs a mão dela no meu peito e disse-me para parar.

- Pára!

Estava simplesmente a fazer o jantar para os dois, depois de um dia em casa a ver filmes ao lado dela. Tinha descascado umas batatas para cozer e descongelado umas postas de pescada. Estava a cortar cebola e salsa para fazer o molho verde quando ela me perguntou o que é que eu estava a fazer.

- O jantar, claro. 
- Eu não tenho fome. Tu tens? - disse ela.
- Não tenho, mas são horas de jantar.

Senti imediatamente o quão ridículo era o que eu tinha acabado de dizer. Estava escravo do relógio e fazia o jantar da mesma forma que andava apressadamente nas ruas sem ter para onde ir, para fingir que tinha tudo quando não tinha nada. Neste caso não a tinha a ela.
Nunca a tive, de facto, mas foi ela que me ensinou a parar.

11.06.2012

respostas a perguntas inexistentes (226)

o gato na cabeça do miúdo lunático

Estou em jejum desde que acordei. Entro no consultório e digo que tenho uma endoscopia marcada para as dez menos um quarto. Peço desculpa pelo atraso sem que a recepcionista levante os olhos na minha direcção. Pergunta-me o nome, a idade, a morada, os números de telefone e de contribuinte sem olhar para mim. Sem me ver.

- São dez euros! - diz.

Eu pago e sento-me. Sinto-me qualquer coisa muito parecida com um código de barras. Aquela mulher pediu-me informação pessoal sem querer conhecer a minha cara, o espelho do que eu sinto. Não lhe interessa. Sou apenas um cliente. Mais um cliente. 
A sala é apertada. Treze cadeiras, das quais apenas três estão vazias, e um tapete vermelho ao centro. Uma mulher choraminga numa delas, quase à minha frente. Não percebo se é de dor ou de medo da doença. Olho-a nos olhos e ela sorri-me timidamente, sem vergonha. Devolvo o sorriso tentando parecer compreensivo.
A recepcionista levanta-se e vem ter comigo. Diz-me que a minha receita tem um desenho na parte de trás e que vai ter que dizer ao doutor, pois não sabe se é válida ou não. Explico-lhe que foi sem querer, que a misturei entre um monte de papéis de rascunho e acabei por desenhar um gato na cabeça de um miúdo lunático. Ela não se ri, não reage emocionalmente. A face dela continua igual, como se de uma escultura em pedra se tratasse. Tenho pena dela.

- Tenho que ir perguntar ao doutor! - E vai.

Gosta de mim, por favor! É o que eu penso, sem pensar muito bem a quem dirijo o pensamento. À Raquel, à minha filha, aos meus irmãos, ao meu pai ou à minha mãe. Aos meu amigos, talvez. Sei lá. E se eu tiver um problema no estômago? Daqui a uns vinte minutos talvez veja a vida a fugir-me, sem sequer me olhar olhos nos olhos. Talvez. Gosta de mim, por favor!

- O desenho é bonito! É o quê? - diz-me um homem que está mesmo ao meu lado.
- É um gato na cabeça dum miúdo lunático. - ele ri-se.

A mulher que choramingava aumentou de intensidade. Agora chora bastante. Tem as duas mãos no rosto e está dobrada sobre ela mesma, encolhida perante o mundo, perante o futuro, perante tudo. Apetece-me ir lá abraçá-la, mas não estou capaz.

- O doutor pode atendê-lo! - ouço.
- Talvez tenha gostado do meu desenho! - penso.

O corredor para o consultório é curto, mas as minhas pernas não querem lá chegar. Por fim abro porta e o médico sorri. Por trás dele estão algumas plantas altas que enchem de vida aquele lugar. Os médicos são o correio da vida e da morte. Fixo-o bem, a tentar perceber que tipo de médico é este. 

- Deite-se na maca! - diz ele por fim.

As lágrimas vêm-me aos olhos, embora eu não esteja realmente a chorar. É uma reacção física ao incómodo do tubo que me vai entrando pela garganta. Estou em sofrimento físico e penso na mulher que chora lá fora, na sala de espera, com um sofrimento que eu não cheguei a descortinar. Faço a endoscopia e, por conselho do médico após a nossa conversa, uma biopsia.

- Não tem nada no estômago, a não ser uma bactéria que convém erradicar! - entrega-me um envelope para o meu médico de família.

Saio e ouço-o a dizer a palavra "próximo". Mais tarde ou mais cedo, todos somos o próximo em alguma coisa. Lembro-me do gato na cabeça do miúdo lunático. Rio-me. Estou cá fora na rua e sinto o doce vento a acariciar-me a face. 

11.05.2012

conversa 1954

(na minha casa)

Ela - Para que é isto tudo?
Eu - É a minha colecção de coisas antigas. Este rádio tem mais de cinquenta anos, este projector de oito milímetros também. Esta câmara é dos anos sessenta e este aspirador dos setenta. Se quiseres perguntar alguma coisa, está à vontade...
Ela - Quero.
Eu - Diz...
Ela - Para que é que tens tanto lixo?

respostas a perguntas inexistentes (225)

Fiz um chá de hortelã esta manhã. Antes de o beber, sentei-me no sofá a aquecer os dedos das mãos na chávena fumegante. Em silêncio total. A Raquel não sabe, mas por um momento apeteceu-me que ela estivesse ali ao meu lado só para encostar a cabeça no ombro dela por uns segundos.
As cortinas da sala estavam corridas e filtravam a luz do Sol que entrava, tingindo de vermelho o início do meu dia. Liguei o computador para começar a trabalhar assim que os ovos cozessem, e perdi-me numa floresta de pensamentos e associações de ideias. Desemprego, projectos pessoais e profissionais a realizar, compromissos políticos para cumprir, uma filha para educar e uma mãe que foi operada pela segunda vez em pouco tempo.
A água estava a ferver. Saí dessa floresta para ir buscar os ovos que, ao bater na panela, emitiam um som inquieto. Os meus dedos aquecidos mergulharam então na água fria com que os arrefeci. Tirei a casca a um deles e comi-o em apenas duas dentadas. Guardei os outros no frigorífico. Estalei os dedos, confusos por dois choques térmicos seguidos, e sentei-me a trabalhar. Não consegui.
Peguei no telefone e liguei à Raquel para um número cujo tarifário é, para mim, gratuito. Falámos um minutos ou dois e desliguei. Trabalhei quatro horas seguidas. As mulheres têm a mania de não perceber o quão importantes são no funcionamento na vida dum homem, na ignição dos seus pensamentos e acções. É por isso que parecem sempre tão longe, mesmo quando estão perto.

11.04.2012

conversa 1953

Ela - Dói-me a cabeça!
Eu - O que é andaste a fazer?
Ela - Não andei a fazer nada. Acordei com dor de cabeça e pronto.
Eu - Pensei que pudesse ser ressaca...
Ela - Só te disse que me doía a cabeça. porque é que raio partes logo do princípio que me meti nos copos?
Eu - Não parto. Apenas...
Ela - DETESTO INSINUAÇÕES DESSAS!
Eu - Tem calma!
Ela - É QUE ÉS SEMPRE ASSIM. JÁ ME LEMBRO PORQUE É NADA RESULTOU ENTRE NÓS!
Eu - Não precisas gritar, até porque não ajuda nada na dor de cabeça.
Ela - Já me passou!

11.02.2012

não estamos sós

Estou desempregado, mas decidi levantar-me todos os dias de manhã e fazer um horário de trabalho regular, mais ou menos entre as nove e as cinco ou seis da tarde. Passo os dias a escrever e a trabalhar em alguns projectos que quero desenvolver, entre eles o adormecer.pt
Levanto-me, tomo os comprimidos para a tensão, faço um pequeno-almoço de iogurte natural com cereais, sento-me à mesa da sala e ligo o computador. Para além do trabalho, pouco mais faço do que actualizar este blogue e ir, uma ou outra vez, ao facebook.
Tento também gastar o mínimo de dinheiro possível. Para além do pequeno-almoço, tento fazer em casa refeições equilibradas e baratas, leio livros que vou buscar à biblioteca, tomo banhos rápidos e evito ao máximo usar o automóvel. Às vezes, por uma questão de saúde mental, vou tomar café ou beber uma cerveja, e são esses os meus luxos.
Na verdade, acho que consigo manter esta regularidade porque não estou sozinho nisto. Tudo o que faço tem uma repercussão imediata na Raquel, a quem mostro e conto tudo o que estou a tentar fazer. Não me sinto isolado do mundo e, como ela é honesta comigo em todas as opiniões que dá, seja para dizer mal ou bem, vou tendo uma janela para o que aí vem.
Além disso, na minha família tenho um irmão e duas irmãs que me estão a ajudar no adormecer.pt, com ilustrações e traduções que só pagarei quando tiver dinheiro, provavelmente depois de transformar isto numa editora infantil a sério, que é um objectivo desde o início e que está lentamente a ganhar forma.
Não me sinto sozinho, e isso é o mais importante. Ontem, por exemplo, um dos meus melhores amigos apareceu-me em casa com uma garrafa de vinho e uma chouriça para assar, o que deu direito a uma conversa de cerca de três horas.
Há bocado tirei dez minutos para me encostar ao vidro da janela. Lá em baixo, do outro lado da rua, um homem de bengala tinha os sapatos com os atacadores desapertados e não conseguia baixar-se para os apertar. Era velho, e aquilo estava a prejudicar-lhe tanto a mobilidade que ficou parado no meio do passeio sem saber muito bem o que fazer. O vento não facilitava, como se estivesse a soprar propositadamente na sua direcção. Desci a escadas a correr, atravessei a rua e apertei-lhe os atacadores.
Não estamos sós.

11.01.2012

conversa 1952

Ela - A tua cadela é tão linda! Posso fazer-lhe uma festinha?
Eu - Podes, mas olha que ela anda muito alterada desde que teve filhotes.
Ela - Alterada?!
Eu - Sim. De vez em quando rosna a quem tenta aproximar-se.
Ela - Ah! Eu percebo. É como eu.
Eu - Como tu?
Ela - Sim. Quando ando com as hormonas alteradas também rosno um bocado.