5.31.2012

coisas que fascinam (146)

amanhecer

Hoje acordei perdido no tempo. Naqueles primeiros momentos não sabia em que dia estava, que horas eram, nem o que era suposto fazer depois de me levantar. Não sabia se estava de folga ou se tinha que ir trabalhar, se tinha combinado alguma coisa com alguém ou, pelo contrário, teria o dia todo só para mim. Olhei para as coisas do quarto mas não encontrei nelas nenhuma resposta até ver uma camisola pendurada no cabide da porta.
Foi a camisola que usei durante o dia de ontem, uma t-shirt vermelha com um desenho à frente, e permitiu-me refazer os últimos momentos antes de adormecer. Cheguei a casa muito cansado, fui à cozinha e abri o frigorífico sem saber muito bem porquê, feri-me a abrir uma lata de cerveja que bebi rapidamente e deixei tudo o que trazia nos bolsos em cima da banca. Depois lavei os dentes, despi-me e deitei-me. A camisola ficou ali, à espera de me contar esta manhã isso mesmo: que cheguei cansado a casa por causa dum dia de trabalho intenso.
Fiz as contas a partir dessa informação e deduzi que hoje era novamente dia de ir trabalhar. Aos poucos, toda a informação se agregou no meu cérebro como se fosse um puzzle enorme e monocolor. Sempre soube onde estava, mas agora sabia também quando e como.
Este amanhecer no vazio acontece-me às vezes, mas apenas nos dias em que durmo sem ninguém ao meu lado. É uma espécie de amnésia momentânea sobre tudo o que foi a minha vida nos últimos dias. Fico ali, deitado na cama como se estivesse a pairar sobre nuvens, como se não tivesse havido ontem nem fosse haver amanhã. Apenas uma imagem me vem à cabeça, e é a da Raquel perto de mim, talvez também deitada sobre nuvens. Não sei bem.
Também não sei muito bem quanto tempo é que costumo estar assim, até a consciência se apoderar lentamente de mim e obrigar os meus olhos a procurar um sinal da minha vida. Uma t-shirt, por exemplo. Talvez dez segundos, talvez dez minutos, talvez meia-hora. Sei que depois acabo sempre por me vestir à pressa e ir a correr para o comboio. É no comboio, com a cabeça encostada ao vidro trémulo, com a pequena ferida que fiz no dedo a começar a doer-me, que me dou conta de como é bom estar ausente do mundo por um bocado. Distancio-me do dia-a-dia, do ordinário, do quotidiano. Por um momento percebo bem o que é importante.

5.29.2012

por todos nós...

Por uma vez serei mais do que sério. Por mim, pela minha filha, por este país, por todos os que por aqui passam. Enfim, pela liberdade. Passo a transcrever uma mensagem do senhor João Penha-Lopes, pai desta menina agredida brutalmente pela PSP. Por uma vez também, peço que ninguém fique indiferente.

Esta é a minha filha.....QUE FOI BRUTALMENTE AGREDIDA PELA PSP !! Claro que foi aberto de imediato um processo crime e ela foi hoje vista por um médico do Ministério Público que ficou literalmente aterrado com o que viu, não só em todo o corpo como na mente (pois ela agora não consegue olhar de frente para um agente da PSP nem andar de comboio), e solicitou a entrega de um TAC à garganta que mandámos fazer, numa clínica privada, pois na ida ao Hospital S.Francisco Xavier, imediatamente após a agressão, não tinham equipamento para ver os tecidos moles do pescoço onde os punhos fechados de um dos agentes fizeram pressão, estando ela contra uma parede. O TAC acusou os danos. Estava a viajar num comboio de Lisboa para a área de residência e saiu na estação perto de casa onde estavam 10 agentes que se juntaram aos 3 que vinham no comboio e onde tiveram problemas com um grupo de jovens que saíram duas estações antes dela. Ela até vinha a dormitar. Saiu na sua estação e um conhecido que vinha com ela começou a ser de imediato agredido pelos agentes na gare. Quando ela gritou a pedir para pararem de bater no jovem foi imobilizada e arrastada pela estação. Foi atirada de cabeça contra as cancelas de passagem dos passageiros tendo caído. O agente que a agrediu levantou-a pelos cabelos e arrastou-a pelos braços para dentro da esquadra localizada nas imediações da estação, onde a levou para uma área vazia, a atirou contra uma parede e lhe espremeu o pescoço com os punhos fechados. Não foi feito qualquer auto. Ela conseguiu telefonar-nos do telemóvel a pedir socorro porque foi espancada e estrangulada. O agente a quem ela passou o telefone disse não saber o que se passava ou o que o colega tinha feito (com a minha filha a gritar em background que era ele que a tinha espancado) mas que ela seria de imediato libertada pois não havia qualquer problema com ela. Vamos amanhã a uma consulta da APAV para receber acompanhamento e formação sobre segurança pois parece provável que hajam retaliações segundo nos foi comunicado por diferentes entidades, o que nos obriga a ter cuidados redobrados.... E agora ? Que devemos fazer ? Aceitam-se sugestões...

facebook de João Penha Lopes

piano

Estou numa casa que não é minha. Não sei de quem é, para ser sincero. Sei que tem um piano e que entrei aqui com uma mulher que acompanhei desde um restaurante na baixa da cidade, enquanto os candeeiros das ruas cochichavam em segredo sobre nós. É natural que o fizessem. Eles têm-me visto todas as noites por aí, sozinho que nem um cão, à deriva pelas ruas labirínticas de Aveiro.
Convidou-me a entrar. Aceitei na condição de ter dois copos e uma garrafa de vinho, como que a dizer-lhe que esperava sentar-me com ela a conversar antes de irmos para a cama. Se é que vamos para cama, pergunto-me em silêncio. Ela estende-me um copo generosamente servido com um vinho que diz ser do Douro. Reparo nos dedos dela, que de tão finos me espantam por conseguirem segurar um copo tão grande e cheio. O piano deve ser dela. A pianista deve ser ela. Talvez a casa seja dela também.
Dou o primeiro gole e sento-me num sofá de um só lugar que me parece demasiado limpo para a roupa que trago vestida desde manhã. Ela puxa uma cadeira de madeira e senta-se perto de mim, talvez para evitar que as paredes ouçam a nossa conversa. Sou eu quem está mais desconfortável, apesar de tudo. Começo a sentir-me um monstro na casa duma bela qualquer. É a primeira vez que me apetece beijá-la.
Nada lhe falha nos gestos, como se os tivesse ensaiado uma vida inteira. Já eu, a pousar o copo na mesa de vidro da sala tenho que fazer três tentativas para não entornar vinho. O som do vidro com vidro parece-me uma bomba a atingir o solo. Fico nitidamente em desvantagem. Estou inseguro, intimidado. Ela não.
As mesas do restaurante estavam todas ocupadas. Ela chegou sozinha e perguntou-me se podia sentar-se. Foi o empregado que moderou o nosso encontro, assim que nos viu juntos. Pelos vistos somos os dois clientes habituais do mesmo sítio, apesar de eu nunca a ter visto na minha vida. Não sabia que eram amigos, disse ele. Eu também não, respondi. Ela sorriu. A conversa entre nós continuou a partir daí, do simples facto de estarmos juntos por uma casualidade. Jantámos, bebemos, saímos dali.
Pego no copo de novo. As marcas redondas que foi deixando na mesa de vidro fazem o símbolo dos Jogos Olímpicos. Costumo fazer isso várias vezes, pousar o copo de forma a fazer um desenho qualquer. Talvez, afinal, eu não esteja assim tão nervoso.É a primeira vez que me recosto para trás. Sinto o veludo do sofá a segredar-me coragem enquanto ganho ângulo suficiente para lhe ver o corpo quase todo. É bonita. Não sei bem de quem é esta casa, mas uma conversa com um bom copo de vinho é a melhor forma de o descobrir. Tocas Piano? E ela sorri.

5.28.2012

conversa 1911

Ela - O meu marido fica todo roído de ciúmes quando lhe conto algumas coisas que se passam no meu escritório.
Eu - Porquê?
Ela - Porque sim. Se eu lhe digo, por exemplo, que um colega meu me convidou para almoçar, ele muda logo de cara. Não diz nada, mas eu noto que ele fica doente.
Eu - Não faças isso.
Ela - Faço porque quero que ele saiba que ainda há homens que se interessam por mim.
Eu - Se ele gosta mesmo de ti, acha que todos os homens no mundo se podem interessar por ti. Afinal de contas, ele é homem e interessa-se. Tu andares a provocar-lhe ciúmes dessa maneira, só pode fazer com que ele te ganhe alguma raiva e vá gostando cada vez menos de ti.
Ela - Tens a certeza?
Eu - Tenho.
Ela - Então hoje digo-lhe que é tudo a brincar.
Eu - Não digas nada. Está calada que chega.
Ela - Olha que esta. E eu lá sei estar calada?! Tenho que estar sempre a dizer qualquer coisa.

5.25.2012

coisas que fascinam (145)

a galope 

O símbolo dos correios era (acho que ainda é) um homem a cavalo com uma corneta. Fazia jus às cartas de Amor que se escreviam. Entre Aveiro e Setúbal, por exemplo, eram dois dias a cavalgar para lá e dois dias a cavalgar para cá. Escrevia-se uma carta e, quando se estava mais ansioso, escrevia-se outra ainda antes de ter recebido a resposta da anterior. Eram cartas que levavam tudo de quem as escrevia. Suores, nervos, medos e sobretudo saudade. Não admira que o cavaleiro fosse a abrir caminho e levasse uma corneta para anunciar a sua chegada.
As cartas de Amor encolheram-se com o tempo. Ficaram reduzidas a mensagens de telemóvel ou emails escritos à hora do almoço, naqueles dias em que se fica a comer uma sanduíche em frente ao computador do escritório. É uma pena. Uma carta de Amor era um investimento total numa paixão que se tinha, um sms é uma espécie de aposta no casino. Se der deu, se não der não deu. Gastou-se a moeda.
Eu decidi montar um cavalo e galopar de novo. Há uns dias, durante umas arrumações lá em casa, a Raquel mostrou-me uma pilha de cartas de Amor que recebeu durante a vida. Não as li, mas gostei de as ver ali arrumadinhas numa caixa colorida, como se alguém as tivesse deitado e ajustado o lençol para que dormissem bem. Não é possível guardar assim um email. Mesmo que se imprima, falta-lhe o cheiro, a cor, o nervo, a vida. 
A galope, portanto.

conversa 1910

Ela - Estou quase a fazer quarenta anos.
Eu - Nada que eu já não tenha feito.
Ela - Mas eu sou mulher...
Eu - E depois?
Ela - E depois?! Sabes muito bem...
Eu - Não sei nada...
Ela - A partir dos quarenta as mulheres começam a perder valor de mercado. Os homens começam a ganhar...
Eu - Isso não é bem assim, e acho que não te deves preocupar. Estás uma mulher bonita. Eu acho que estás no auge.
Ela - Pois... estou no auge. A partir daqui é sempre a descer.
Eu - Estás a sofrer de ansiedade.
Ela - Não estou nada. Estou é a ser realista.
Eu - Tem calma e vai mas é gozando a vida o mais que puderes.
Ela - Esse é o problema. Sinto que ainda não gozei nadinha. Preciso de muitas noites de copos, muito sexo, muitas festas...
Eu - Estás a sofrer de ansiedade.
Ela - Se calhar estou só um bocadinho.

5.24.2012

por acidente

Houve uma determinada altura na minha vida em que me tornei amigo de várias mulheres por razões muito concretas, isto é, dava-me bem a conversar com elas sobre temas muito específicos, sendo que a cada uma delas correspondia um único tema. Por exemplo, sempre que saía com a Sónia acabava a falar de música, sempre que saía com a Cristina acabava a falar de política, sempre que saía com a Susana acabava a falar do trabalho dela e do meu. Nunca aconteceu apaixonar-me por nenhuma destas mulheres, mas sei que tive com elas uma forte relação de amizade. Com algumas, aliás, ainda tenho.
Isto aconteceu-me de forma tão intensa (num ano devo ter feito cerca de vinte amigas assim), que cheguei a confessar a um amigo meu que se calhar nunca mais ia conseguir apaixonar-me na vida. Cada vez que conhecia uma mulher, estabelecia-se automaticamente entre nós este tipo de relação monotemática. Às vezes em casa, outras vezes num bar qualquer, ficávamos horas a falar e nunca sobrava espaço nem vontade para um mínimo de sedução que fosse. Com esse amigo meu, por engraçado que possa parecer, assim como com todos os meus amigos homens, isso nunca aconteceu. As conversas sempre variaram de assunto com a mesma velocidade com que se abre uma cerveja ou se enche um copo de vinho.
Um dia distraí-me ao volante e bati na parte de trás doutro carro. Foi num semáforo, em que eu era o segundo da fila. Quando mudou para verde, não reparei que o condutor à minha frente continuava parado e avancei. Não foi nada de grave, apenas uns riscos no pára-choques, mas o condutor da minha frente era uma mulher que se mostrou bastante nervosa. Gritou e empurrou-me várias vezes enquanto eu lhe dizia para ter calma, que aquilo não tinha sido nada e que eu assumiria sem problema nenhum os poucos danos do acidente. Por fim, quando se acalmou, explicou-me que o marido dela adorava o automóvel e se ia zangar. Acabou mesmo por me confessar em jeito de desabafo que ele, para além do necessário para a gestão da vida a dois, só falava de automóveis. E foi assim que conheci a Tatiana.
Inventámos uma desculpa qualquer para não ir trabalhar, eu e ela, e começámos a procurar uma oficina que arranjasse o carro no próprio dia. O objectivo era o marido dela nem sequer chegar a saber do acidente. Encontrámos uma, mas que ia precisar do dia quase todo para o fazer, por isso convidei-a para almoçar e acabámos por passar  bastante tempo juntos.
Podem não acreditar, mas foi dos melhores dias que tive naquela fase da minha vida. Almoçámos num pequeno restaurante da zona histórica de Aveiro, depois fomos passear para a praia, onde tirámos os sapatos e deixámos quilómetros de pegadas na areia, sempre a conversar sobre todos os temas possíveis e imaginários. Praticamente não houve silêncios entre nós, com excepção dum momento ao fim da tarde em que o Sol se começou a pôr e nos calámos ao mesmo tempo. Foi mesmo antes de voltarmos para ir buscar o carro dela e, nessa altura, já eu me sentia completamente apaixonado por ela.
Passei os dias seguintes a pensar praticamente só nela. Nela e no vento que tinha feito da nossa prolongada conversa um segredo daquela praia. O mesmo vento que tinha feito dançar os seus longos cabelos castanhos e desenhado perfeitamente o perfil dos seus seios na camisola verde escura. Pensei na forma como os seus profundos olhos negros me tinham trespassado o corpo, fazendo-me sentir transparente. Pensei em tudo, até em telefonar-lhe para tornarmos a sair.
Nunca o fiz. Despedi-me dela à porta da oficina com um estranho abraço quente e frio ao mesmo tempo. Quente por gostar dela, frio por saber que era o primeiro e o último. A Tatiana nunca o soube, mas foi ela que me fez acreditar que em mim ainda podia haver paixão e Amor, foi ela que que me fez perceber que as minhas conversas monotemáticas com tantas mulheres não eram senão um produto de mim mesmo. Não das minhas amigas. Era como se o meu coração tivesse sido um campo estéril durante muito tempo, até esse dia.
Passado pouco tempo apaixonei-me outra vez, por acidente. Até hoje.

5.23.2012

conversa 1909

(na minha casa)

Ela - O teu gato é tão lindo! Como é que se chama?
Eu - Aníbal Cavaco Silva.
Ela - Aníbal Cavaco Silva?! És maluco!
Eu - Como é que se chama o teu gato?
Ela - Bolinhas.
Eu - Desculpa lá, mas chamar Bolinhas a um gato é que não está com nada.
Ela - Chama-se Bolinhas porque tem bolinhas espalhadas pelo pêlo todo. Tem tudo a ver.
Eu - Pronto. O meu  chama-se Aníbal Cavaco Silva por ser cor de laranja e estúpido ao mesmo tempo. Também tem tudo a ver...
Ela - Sabes... às vezes acho que eu e tu...
Eu - Eu e tu o quê?
Ela - Ainda bem que nunca fomos mais do que amigos.

5.22.2012

respostas a perguntas inexistentes (210)

olha-me!

Às vezes, não sei bem porquê, há pequenas insignificâncias que se escrevem na minha memória de forma tão vincada que nunca mais me esqueço delas. Como se fossem um carimbo, surgem de vez em quando no meu raciocínio sem razão aparente. Normalmente são olhares. Chego a ficar anos sem me lembrar deles, mas num determinado momento relembro-os com tal frescura que parece que foi ontem que os vi.
Lembro-me, por exemplo, de ver dois homens a segurarem uma gaivota viva em Lagos, no Algarve, durante umas férias que fiz ali em criança. Eu tinha sete anos, portanto isto foi há trinta e três. Eu ia para a praia com o meu pai e a minha mãe, e vi-os pela janela de trás do carro. Lembro-me perfeitamente que um deles tinha uma camisa vermelha e o outro uma t-shirt branca e suja. A gaivota tentava soltar-se em vão e o homem da camisa vermelha, que lhe segurava o bico e uma das asas, fitou-me prolongadamente até o carro desaparecer numa curva. Era um olhar ameaçador, pelo menos na perspectiva duma criança, e assustou-me.
Outra memória é de há dezassete anos, numa esplanada em Praga, na República Checa, onde me sentei para beber uma cerveja com uma brasileira que tinha acabado de conhecer. Pois bem, nessa tarde em que nos sentámos na esplanada, numa outra mesa estava uma criança com uma máscara de caveira que nunca deixou de olhar para mim. Devo ter estado ali sentado quase uma hora com a máscara sempre a olhar na minha direcção. Fiquei de tal forma incomodado com aquilo que a certa altura me levantei e dirigi-me a ela. A criança fugiu, desaparecendo por entre a multidão de Národní Trída, e os adultos que estavam na mesma mesa nem sequer se mexeram. Só aí é que percebi que nem sequer eram parentes. Nunca mais a vi, mas também nunca mais me esqueci.
Já reconheci estes dois olhares várias vezes na minha vida noutras pessoas e situações. O olhar ameaçador do homem que prendia a gaivota e o olhar quieto, ameaçador e escondido da máscara daquela criança checa. Reconheci-os em entrevistas para empregos, nas alas de segurança de vários aeroportos ou em simples balcões de atendimento público. Reconheço-os por aí de vez em quando, e é quando os torno a lembrar como se fossem uma recordação de ontem.
Memorizo de tal forma alguns olhares que já pensei em catalogá-los por níveis de ameaça e de Amor. É só uma brincadeira, claro, mas ontem, enquanto tomava café, fiz uma tabela numa folha com vários olhares de que não me esqueço, incluindo os dois que já referi, e estabeleci para cada um deles uma intensidade emocional. Tenho lá olhares com apenas alguns meses e outros com muitos anos. O olhar da minha mãe quando me encontrou depois de eu ter fugido de casa em criança, que deve ter uns trinta e dois anos; o olhar da minha filha ao meu colo, em bebé, que tem onze anos; o olhar da Raquel quando me apaixonei por ela, que tem três anos e meio. Enfim, defini ao todo mais de quarenta olhares de que não me esqueço.
Acabei de beber o café e pedi uma cerveja. Estava só num bar em Aveiro e fui deixando o tempo passar enquanto olhava fixamente pela janela. Ainda tinha o meu moleskine aberto na tabela dos olhares quando, a duas mesas de mim, uma mulher e um homem começaram a discutir. Era nitidamente um discussão conjugal e, apesar de ela tentar falar baixo, ouvia-se nitidamente tudo o que dizia. Ele estava calado como uma criança envergonhada, de olhos postos no chão.
Acrescentei esse olhar à minha tabela. Era um olhar fugitivo, um olhar para o chão para não enfrentar a discussão. Um olhar de quem já Amou mas agora vê esse Amor como uma armadilha. Está preso, quer sair e não sabe como. Já se esqueceu do que é o Amor. E foi isso que escrevi.

5.21.2012

conversa 1908

(ao telefone)

Ela - Preciso que me ajudes aqui em casa numas mudanças.
Eu - Hoje não. Tem que ser amanhã, está bem?
Ela - Porquê?
Eu - Este fim de semana quase não dormi por causa do trabalho. Estou muito cansado.
Ela - Então descansa depressa e depois telefona-me.
Eu - Não sei descansar depressa. Descansar só tem uma velocidade que é estar deitado a dormir. Amanhã, está bem?
Ela - Então dorme depressa.

os adeptos de futebol

Os adeptos de futebol são muito parecidos com as testemunhas de Jeová ou com os operadores de telemarketing, isto é, são uns chatos. Na verdade, eu até acho que são os mais chatos e palermas de todos. As testemunhas de Jeová chateiam-nos porque nos querem salvar a alma, os operadores de telemarketing querem vender-nos robôs de cozinha porque têm que ganhar a vida, os adeptos de futebol é porque gostam de um clube de futebol.
Não há nada mais egoísta do que passar a noite a buzinar um penduricalho qualquer só porque uma equipa qualquer ganhou um jogo. Pior, enchem as redes sociais na internet com fotografias e frases baratas, centram a discussão pública na porcaria dum fora-de-jogo que não foi e devia ter sido, alimentam uma indústria milionária que não produz nadinha.
A má notícia para os adeptos de futebol é que só é assim porque o futebol é fácil, e quem não consegue discutir mais nada porque não chega lá, acaba mesmo a pensar no que é mais fácil e não tem interesse nenhum:  o futebol. Estava tudo bem, desde que não chateassem mais ninguém.
A Rita é uma amiga minha que, a mim não me engana ela, sabe tão pouco do que passa no futebol como eu. Provavelmente sabe os resultados dos jogos porque o marido dela lhos diz. Mais nada. Mesmo assim mandou-me uma dessas frases feitas, com uma imagem azul por trás, a dizer que Ama o Futebol Clube do Porto. Não faltava mais nada do que agora virem dizer que Amam um clube qualquer, que normalmente até já nem é um clube mas sim uma Sociedade Anónima Desportiva, da qual fazem parte vários accionistas que só pensam no valor das suas acções.
Mas percebi. Finalmente percebi. Quem acha que pode Amar um clubezeco qualquer é porque anda mesmo alheado da vida. Tão alheado que nunca se apercebeu do que quer dizer a palavra Amor. Por mim podem continuar assim mas, por favor, não me chateiem.

5.18.2012

conversa 1907

Ela - Ontem tive, finalmente, sexo com aquele rapaz de quem te falei...
Eu - Aquele com quem andavas a sair há quase meio ano?
Ela - Sim. Até chorei.
Eu - Doeu-te?
Ela - Não estúpido. Fiquei emocionada.
Eu - Ah!
Ela - Ah?! É só isso que tens para me dizer?
Eu - Eu não estava lá. Queres que te diga o quê?
Ela - Como amigo, podias perguntar-me como é que me sinto.
Eu - Já sei que choraste porque te emocionaste. Como é que sentes, então?
Ela - Nem sei bem...

5.17.2012

locutora

Confunde-me esta coisa de me apaixonar pelo desconhecido, mais propriamente pelas desconhecidas. Uma vez, por exemplo, andei doente de Amor por uma locutora de rádio que nunca cheguei a ver. Para além da voz, nada mais. Creio que a culpa foi essencialmente do meu despertador, que me acordava sempre à mesma hora na mesma estação. Naquele período do dia em que ainda não estamos despertos, mas também já não estamos a dormir e em que, portanto, o sonho se dissolve facilmente na realidade, era a voz dela que me embalava.
É verdade que nunca a cheguei a ver, mas também é verdade que ela me fez perceber uma das muitas coisas que um homem procura numa paixão: um abrigo. Durmo sempre com a persiana corrida, deixado os seus buracos abertos. Desta forma, todas as manhãs a luz do Sol vai entrando devagar no quarto, como se tivesse que pedir licença para me vir despertar dum sono bom. Nesse momento não sei como está o mundo lá fora. Talvez haja uma revolução, talvez um acidente na rua tenha feito vítimas mortais, talvez dois homens se agridam um ao outro depois de um desentendimento no trânsito. Nunca me interessou. Dentro do meu quarto, por aqueles dias, a voz dela era o meu mundo e dizia-me que estava tudo bem. Ela também gostava dessa ténue luz que me espreitava, e depois punha uma música a condizer Só para mim.
Senti a falta dela quando, por causa do meu horário de trabalho, passei a acordar mais tarde. Durante alguns dias, por não a sentir perto de mim, levantava-me ainda ensonado e passava o resto dos dias a dormir em pé. Alguma coisa estava mal comigo, e demorei tanto a curar a falta dela como se fosse um outro Amor qualquer. Mas, claro, como se fosse outro Amor qualquer, lá acabei por passar a ressaca.
Hoje acordei mais cedo do que o costume e foi dela a primeira voz que ouvi. "Se ainda está no vale dos lençóis, fique a saber que tem mais sorte do que eu, e aproveite para ouvir esta música ainda de olhos fechados", disse. Eu fechei os olhos e ouvi-a.

5.16.2012

respostas a perguntas inexistentes (209)

Paralisia "distancial" 

O meu Amor pela Raquel sofre de Paralisia "distancial". O que é isso? À medida que a distância entre nós aumenta, eu vou-me sentido mais limitado nos movimentos. Por exemplo, estou em casa e dou por mim com a cabeça aninhada entre as mãos, sem vontade sequer de pegar no copo de uísque à minha frente que já enchi há mais de vinte minutos. Ao lado do copo tenho o telefone mas, apesar da vontade, não lhe telefono mais. Já o fiz hoje umas dez vezes, sempre para lhe dizer o mesmo. Que a Amo.
Se eu me visse assim, sozinho em casa sem vontade de nada, dava-me um pancadinha nas costas e convidava-me para sair, beber um copo por aí e dar dois dedos de conversa comigo mesmo. É o que faço às vezes. Foi o que fiz ontem. No princípio as pernas pareciam com pouca vontade de andar, mas depois lá acabaram por ceder.
Acabei num café dos subúrbios com um televisor bêbado aos gritos para mim e mais três homens também sozinhos, cada um na sua mesa, cada um com a sua bebida. Eu a beber Bushmills, outro a beber cerveja de garrafa, outro cerveja de pressão e outro um licor qualquer. Todos me pareceram homens exageradamente sós. Eu também, apesar de saber que não o sou.
A minha Paralisia "distancial" acabou aí, nesse preciso momento, pouco antes da empregada começar a varrer o chão e nos expulsar delicadamente a todos. Levantei-me com energia, paguei os dois uísques sem gelo e fui dar uma volta a pé pela cidade de Aveiro, já quase deserta de vida. É bom sentirmo-nos sós sabendo que não o estamos, pensei.  É bom perceber que por trás de cada história de solidão há sempre uma mulher.

5.15.2012

conversa 1906

Ela - O meu marido ainda me pergunta, no fim de cada vez que fazemos sexo, se eu o acho bom na cama.
Eu - Há quanto tempo é que são casados?
Ela - Vinte e dois anos...
Eu - E é bom na cama ou não?
Ela - Sei lá. Há vinte e dois anos que não vou para a cama com outro. Nem comparar posso...

5.14.2012

pensamentos catatónicos (272)

O Amor corre sempre bem ou mal. Nunca corre mais ou menos. Quando corre mais ou menos é porque está a definhar, se é que ainda não está morto. Essa é a sua maior desvantagem, ao mesmo tempo que também é a maior vantagem. Estar mais ou menos é a única forma de nunca se sofrer, mas é também um atalho para que se morra sem ter dado pela vida.
Pensei nisto agora mesmo, depois de ter visto a Ana como é costume, de braços cruzados num dos cantos da sala. Parece que está à espera que a vida lhe traga alguma coisa. Mas eu até sei que não está. Quando a cumprimentei e lhe perguntei como anda, ela respondeu isso mesmo: que vai andando. Não estiquei mais a conversa. Deixei de o fazer há uns tempos, quando ela me disse que detesta conversas de circunstância e me deixou especado a olhar para uma parede branca, a pensar no mal lhe teria feito. Acho que lhe disse que estava bonita. Só isso. Ela não ligou e afastou-se.
Por essa altura a  Ana deixou-se derrotar por um Amor acabado, que é como quem diz, ela acabou com esse Amor. Parecia um náufrago em alto mar que não queria ser salvo. Ainda parece. A história é a do costume: o marido deixou-a e ela ficou mal. Depois, para não andar mal, decidiu que ia estar mais ou menos para sempre.
De vez em quando encontro-a por aí, como hoje, numa festa organizada por amigos comuns. Estou à espera de lhe poder dizer, numa oportunidade qualquer, que é uma sorte podermos sofrer por Amor. Sofrer por Amor é a única forma de saber o que é Amar. É a única forma de agarrar a vida e deixarmos de andar mais ou menos. Para isso só preciso que ela passe a gostar de conversas de circunstância, porque o Amor é uma circunstância da vida.

5.11.2012

respostas a perguntas inexistentes (208)

taras e manias

Todos nós temos uma mania qualquer. Beber um uísque sempre depois de jantar, por exemplo, ou conduzir com o braço do lado de fora da janela do automóvel. Na verdade há manias para todos os gostos e feitios e, de uma forma natural, acabamos todos por conhecer aquelas que são dos nossos amigos mais próximos. Nunca tinha pensado nisto desta forma até conhecer a Wong, uma empregada dum pequeno restaurante perto de Mong Kok, em Hong Kong. Foi ela que me explicou que, para fazer um bom trabalho no dia-a-dia, tentava conhecer todas as manias dos seus clientes habituais e, mesmo dos clientes que não conhecia de lado nenhum, tentava percebê-las o mais depressa possível.
Acho que ficou surpreendida pelo meu súbito interesse naquele tema, e por isso explicou-me que tinha sido assim que tinha conquistado um dos seus melhores clientes. Um homem qualquer de meia idade que tinha a mania de comer de faca e garfo (como é sabido, os chineses comem com pauzinhos). Ele só lhe disse isso uma vez e, quando lá voltou muito tempo depois, ela ainda se lembrava dele e trocou imediatamente os pauzinhos pelos seus talheres preferidos. A partir desse dia, ele passou a ir lá quase todos os dias.
Fixei a Wong nos olhos, o que admito que me dava um prazer enorme, já que as mulheres asiáticas, na minha opinião, independentemente de serem mais ou menos bonitas, têm sempre uns olhos que vale a pena contemplar como se estivéssemos a olhar para uma paisagem de perder a respiração. Fixei-a nos olhos e disse-lhe que estava a pensar se aquilo era respeito pelo próximo ou servilismo exagerado. Ela amuou, e os seus olhos grandes fizeram questão de me repreender. Por isso mudei de assunto.
Fiquei com a impressão de que, a partir desse dia, ela ficou um pouco mais distante de mim. Sempre simpática, mas com uma distância que me incomodava, já que tinha sido a primeira chinesa com quem eu tinha feito amizade e me tinha sentido realmente bem. Por isso, alguns dias antes do meu regresso a Portugal, comprei dois pastéis de nata (que lá se chamam Portuguese Egg Tarts) e uma garrafa de vinho do Porto numa das melhores garrafeiras que já vi na minha vida. Depois telefonei-lhe e convidei-a para ir beber um copo comigo ao fim da noite. Antes ainda de decidir qual o primeiro bar a que íamos, sentámo-nos num dos bancos da praça da alimentação do Festival Walk, ofereci-lhe a garrafa e comemos cada um o seu pastel. Aproveitei esse momento doce para lhe pedir desculpa por, mesmo sem querer, a ter ofendido. Ela sorriu mas não disse nada.
Estranhamente, ainda hoje acho que essa foi uma das melhores noites da minha vida. Caminhámos por toda a cidade, quase sempre em silêncio, comigo a contemplar a imponência dos edifícios que ali se erguem como velhos que recusam morrer, e com ela sempre ao meu lado como que a perceber os meus pensamentos. Os meus pensamentos eram de que me estava a apaixonar por uma mulher impossível, que vivia a mais de dez mil quilómetros de distância de mim, e que por isso tinha que controlar muito bem as minhas emoções. Acabámos sentados junto ao mar, no lado continental, sentados num muro qualquer a olhar para a ilha, e senti-a abraçar o meu braço direito e pousar nele a cabeça. Perdi a noção do tempo.
Recordei e ainda recordo, como já disse, essa noite do ano de mil novecentos e noventa e nove como uma das melhores da minha vida. Esta semana, por email e já sem a pressão de qualquer envolvimento emocional, disse-lhe isso mesmo. Ela respondeu-me que se lembra que eu tenho a mania de catalogar tudo: os melhores filmes da minha vida, as melhores músicas da minha vida, as melhores paisagens da minha vida, as melhores cidades da minha vida, etc. Enfim, as melhores noites da minha vida também.
Treze anos depois voltámos assim ao tema das manias, e perguntei-lhe se ela era capaz de me explicar o que é que a tinha ofendido na minha observação sobre o servilismo exagerado. Demorou alguns dias a responder-me, de tal forma que cheguei a pensar que tivesse amuado de novo, e quando me respondeu disse-me que se se lembra das minhas manias é porque eu sou importante para ela. Quem gosta de alguém faz tudo o que pode para que esse alguém se sinta bem, explicou-me, e não quer ser confundido com um escravo por causa disso. Simples, não é? Perguntou.

5.10.2012

conversa 1905

(ao telefone)

Ela - Queres ir beber um copo?
Eu - Não.
Ela - Não?!
Eu - Não, desculpa lá. Tive um dia mesmo mau e só me apetece ir para casa, beber um uísque a ler qualquer coisa, e deitar-me...
Ela - Ah! Se estás mal disposto também não quero sair contigo. Normalmente és um chato quando estás assim...

quase ninguém


O problema que temos com o nosso governo é o mesmo problema dos casais que, de facto, não o são. Falta de Amor. O nosso governo devia gostar de nós tal como nós gostamos dele (afinal de contas, por muito que espingardeemos, somos nós que o elegemos ), mas não gosta. Diz que sim, mas passa a vida na cama com outros.
O nosso governo é uma merda, e aqui já nem aceito discutir e peço aos direitosos invertebrados que me poupem ao contraditório. É uma merda. Ponto. Para além de se deitar com outros, gasta com eles o nosso dinheiro todo. Depois engasga-se para nos explicar o que fez. Primeiro promete devolver daqui a uns anos, depois diz que afinal não dá, por fim acaba a pedir ainda mais dinheiro e agredi-nos antes de tornar a sair. É um caso nítido de violência doméstica em que a vítima não é capaz de se salvar a si mesma.
A maior parte dos portugueses vota constantemente à direita por um motivo muito simples: a maior parte dos portugueses é uma cambada de mal amados que só vive bem com o mal dos outros. É a lógica do "se eu estou mal, tu pior estarás". Vai-se nivelando tudo por baixo até não haver mais por onde cair.
Ao contrário do que possa parecer, a Política e a Economia são as coisas mais simples do mundo. É por isso, por ser tão simples, que meia dúzia de gajos do mundo da finança se deitam com os do nosso governo e nos conseguem roubar descaradamente, todos os dias e todas as horas. O que é mais complexo, pelo menos para os portugueses, é o Amor. Ninguém, ou quase ninguém, sabe o que é isso por cá.

5.08.2012

conversa 1904

Ela - Estou tão gorda...
Eu - Não estás nada.
Ela - Estou, estou. Agradeço-te a simpatia, mas sei que estou. E para emagrecer vou ter que emigrar...
Eu - Emigrar?! Emigrar para onde?
Ela - Para um sítio qualquer onde não haja pastéis de nata.

coisas que fascinam (144)

Passei a manhã e a tarde de ontem sozinho. Telefonei quatro vezes à Raquel, sempre com uma desculpa inventada à pressão, só para no fim da cada conversa lhe poder dizer que a Amo.
A estratégia é sempre essa: dizer que se Ama, assim como quem não quer a coisa, sempre que o coração aperta. Sei que a Raquel não se deixa enganar pelas razões que me levam a telefonar-lhe. Ainda bem. É por isso que o continuo a fazer.
Não faço a mínima ideia de quantas pessoas o fazem neste mundo. Para além de mim, talvez sejam todas ou talvez não seja uma única. Sei que é um luxo poder telefonar a alguém por uma merdice qualquer, só para depois poder dizer-lhe que se a Ama.

5.07.2012

respostas a perguntas inexistentes (207)

salvaste-me a noite

Tenho uma amiga de quem gosto muito mas que, por viver longe dela, só vejo muito raramente. Eu divido a minha vida entre Aveiro e Porto, ela divide a dela entre Castelo Branco e a Covilhã. A forma como nos conhecemos foi muito estranha, e levou-me a perguntar várias vezes o que é nos pode interessar ou não numa pessoa. Duma coisa tenho a certeza: há pessoas de quem gostamos muito, outras de quem não gostamos nada. Nunca na vida chegamos a saber o motivo.
Conheci-a há já muitos anos num pequeno bar em Bruges, na Bélgica, durante um fim de semana que ali passei sozinho. Mal entrei, sentei-me no único lugar ao balcão disponível e ela estava ao meu lado direito. Não me lembro de quem estava ao meu lado esquerdo porque, por qualquer motivo, ela me prendeu a atenção desde o primeiro momento. Depois de a ter visto a dar alguns goles numa cerveja tão grande quanto a que entretanto eu pedi, e sem lhe ter ouvido uma única palavra, perguntei-lhe se ela era portuguesa. Ela sorriu e respondeu que sim.
Passámos o fim de tarde e a noite toda a passear por aquela belíssima cidade medieval, entrando de vez em quando num bar à sorte para beber qualquer coisa. Ela mostrou-me um caderno que tinha onde pedia a todas as pessoas que conhecia que fizessem um retrato dela. Não tinha que ser um desenho aproximado. Podia ser um texto, um rabisco ou qualquer outra coisa que, para quem o fizesse, a definisse a ela como pessoa. Folheei todas as páginas e, como ela era uma pessoa que viajava muito, tinha textos em alemão, inglês, italiano e espanhol. Também tinha muitos desenhos, totalmente diferentes uns dos outros.
O interessante daquele caderno é que demonstrava os vários ângulos sob os quais ela tinha sido vista por pessoas diferentes, e acabámos a falar sobre isso mesmo. Ela tinha a teoria que nós somos o que os outros pensam de nós, e que aquele caderno acabaria por dar um puzzle sobre ela mesma. Um trabalho que a ajudaria a conhecer-se melhor a ela própria.
No fim da noite, e já no último bar, ela pediu-me para também lhe fazer um desenho. Com o que o meu estado parcialmente sóbrio me permitiu, desenhei-a duas vezes como se se estivesse a ver a um espelho. Por baixo escrevi que nós também temos o direito de pensar alguma coisa sobre nós mesmos.
Para ser sincero, já não me lembrava desse desenho. Lembrava-me apenas do abraço prolongado que demos quando me despedi dela em frente ao hotel onde estava alojada, e do percurso solitário que depois fiz até à minha pensão barata no perímetro urbano da cidade. Há uns dias fui jantar com ela, numa pequena pizzaria em Viseu, e ela mostrou-mo. Disse-me que nessa noite, apesar de ter vontade, não me convidou para subir ao quarto dela porque tinha lá o marido à espera.
O marido era um holandês viajado, homem de negócios, que lhe controlava totalmente a vida. Ela sentia-se extremamente só e, quando ele tinha reuniões, ela aproveitava para sair e ver pessoas. Como era, e ainda é, muito bonita, sempre lhe foi fácil acabar a conversar com um estranho qualquer. O caderno, confessou-mo nesse jantar, era o resultado dessas saídas.
Nessa noite em que a deixei no Hotel, e porque já era demasiado tarde, ele ralhou violentamente com ela. Foi também a primeira vez que ela lhe respondeu e ameaçou divorciar-se, o que veio a acontecer uns meses depois. Uma das coisas que ela lhe disse nessa discussão é que ele devia ver-se ao espelho, para perceber que não era apenas aquilo que os seus colegas de negócios lhe diziam, mas era também um homem violento, inseguro e sem o mínimo de respeito por quem gostava dele. Depois chorou.
Lembro-me que fui passar esse fim de semana a Brugges precisamente para estar sozinho, mas cinco minutos depois de sair à rua já estava extremamente arrependido. Queria estar com alguém porque me sentia só. Acho que vivi uma época assim, em que nunca estava bem como estava a não ser que alguém me surpreendesse. Não sabia, pelo menos da forma que sei hoje, o que é Amar e estar continuamente apaixonado. Era esse o meu problema.
Ela acabou a pizza dela uns cinco minutos depois de mim, cruzou os talheres e pediu dois cafés.

- De certa forma salvaste-me a vida. - disse.
- Salvaste-me a noite. - respondi.

5.04.2012

conversa 1903

(num bar)

Ela - O que é que vais beber?
Eu - Um Bushmills sem gelo.
Ela - Ainda bem.
Eu - Porquê?
Ela - Gosto de pessoas que bebem da forma mais simples possível. Uma cerveja, um uísque sem gelo e pronto, mais nada.
Eu - Porquê?
Ela - Normalmente são pessoas mais simples e, por isso, mais fáceis de lidar.
Eu - E tu, o que é que bebes?
Ela - Um cocktail qualquer que tenha uma cor berrante. Ainda estou a pensar nisso.

5.03.2012

é azul

Está a chover a cântaros, diz ela. Eu olho para avenida, que se estende até ao fim da vista, surpreendido. Apesar das gotas da chuva deslizarem suavemente pelo vidro da janela, e dos irrequietos guarda-chuvas que se movem lá em baixo como formigas desorientadas, eu ainda não me tinha apercebido da chuva. Estava deslumbrado com o cinzentismo do dia, pontilhado pelas cores vivas de alguns desses guarda-chuvas. Adoro quando chove na Primavera, respondo-lhe.
Olho-a de lado. Parece hipnotizada pela mesma dança de pontos coloridos que me seduziu a mim e parece adivinhar-me o pensamento. Os guarda-chuvas pretos são de homens, os guarda-chuvas coloridos são de mulheres. Só as mulheres é que dão cor aos dias cinzentos.Ela sorri timidamente. Eu também.
Tem sido assim desde manhã cedo, enquanto esperamos os dois por uma consulta de cardiologia na sala de espera dum oitavo andar qualquer, num edifício que tenta passar despercebido pela cidade. Não nos conhecemos, eu e ela, por isso não temos muito para dizer um ao outro. Vamos partilhando com frases curtas e soltas a paisagem amortecida que, enquadrada pela janela, mais parece um quadro vivo impressionista.
Os jornais e revistas em cima da mesa central são desinteressantes e estão desactualizados. Na verdade, mais parecem cadáveres retalhados pela ânsia dos doentes que ali esperaram a sua vez em dias anteriores. Eu e ela, estranhamente, estamos calmos perante esse desolador cenário de papel morto.
Ainda não lhe perguntei porque é que está ali, nem vou perguntar. Nunca são boas notícias, as que levam alguém a visitar um cardiologista. Por isso mantenho-me calado na esperança de que assim consiga também emudecer a doença. Não tenho dormido bem por causa de arritmias cardíacas, e os meus problemas de coração vêm de longe. É isso, penso. Calo-me.
Uma porta abre-se e chamam-na. Fico a saber-lhe o nome. Teresa. Ela é engolida pelo ávido consultório e, nem sei bem porquê, a paisagem lá fora deixa automaticamente de fazer sentido. Passo a sentir-me exageradamente só, e confunde-me sentir solidão pelo facto duma mulher que nem sequer conheço se ter ausentado assim, de repente.
Agarro num desses pedaços de papel e leio um pedaço duma notícia que deve ter, a ver pelo estado dele, pelo menos uns três meses. É sobre um acidente numa auto-estrada. Três feridos graves e um morto. Pergunto-me com estarão agora esses feridos. Talvez estejam em casa, a beber um café quente e a comer torradas com manteiga, numa espécie de aconchego recompensador. Amarfanho o papel e atiro-o para o caixote. Espero.
A porta que engole pessoas abre-se de novo e chamam o meu nome. Cruzo-me com a Teresa e tento perceber-lhe, através do olhar, como correu a consulta. Não consigo, mas pelo menos ela diz-me adeus. Adeus, repito. Fico a vê-la percorrer o longo corredor para a liberdade do dia, lá fora, sem médicos nem conversas sobre morte e doenças. Pega num guarda-chuva antes de sair. É azul.

5.02.2012

conversa 1902

Ela - Há dias vi na televisão uma coisa que me assustou.
Eu - O quê?
Ela - Um homem a dizer que se tinha esquecido de dizer regularmente à mulher o quanto gostava dela. Habituou-se tanto à presença dela que deixou de lhe dar importância, e só quando ela morreu é que ele percebeu a falta que ela lhe fazia...
Eu - É forte!
Ela - É assustador, não é?
Eu - É, mas se tens consciência disso, podes ir já dizer ao teu marido que o Amas.
Ela - Bem... o que me assustou é que é ele que nunca mo diz a mim.
Eu - E tu dizes-lhe a ele?
Ela - Não, mas peço-lhe para ele mo dizer a mim, o que vai dar ao mesmo. Não achas?
Eu - Pedes-lhe para ele te dizer que te Ama e ele nunca to diz?
Ela - Sim.
Eu - Pois... assim a pedido eu também não dizia. A palavra "amo-te" tem que sair sem ser a pedido.
Ela - Então agora não lhe vou pedir mais.
Eu - Se calhar devias dizer-lho tu primeiro.
Ela - Isso não. Tem que ser o homem primeiro.
Eu - Porquê?
Ela - Se uma mulher diz a um homem que o Ama, ele pensa logo que ela quer pinar. 

respostas a perguntas inexistentes (206)

Teolinda

A Teolinda gostava secretamente de mim. Tenho a certeza. Todos os dias, sem excepção, me cruzava com ela na rua que ligava o hospital ao jardim das árvores grandes. Todos os dias, sem excepção, ela fingia que não me via e continuava o seu passo apressado a fingir que tinha para onde ir. Não tinha, e eu sabia-o. Sabia também que era por falta de coragem que ela desviava o seu olhar do meu. Às vezes sorria timidamente, outras vezes não.
Eu acordava todos os dias bastante cedo, penteava-me e fazia a barba, punha umas gotas do after-shave do meu pai e treinava um ar bem disposto no espelho do elevador. Tudo para o caso de ela ganhar coragem e decidir falar-me. Bastava que me cumprimentasse uma vez que fosse e eu dir-lhe-ia o quanto também gostava dela, mas nunca o fez. Por falta de coragem, tenho a certeza. Foi uma pena.
Ficou a chamar-se assim, Teolinda, naqueles dias em que deixou de passar por ali e eu, doente, passava os dias dum lado para o outro à espera de a encontrar. Devo ter feito aquela rua umas centenas de vezes, na esperança de passar por ela para fingir que nem a via e que ela, uma vez que fosse, não fizesse o mesmo que eu. Nunca mais aconteceu, e por isso dei-lhe o nome que sempre me pareceu ter. Teolinda.

parêntesis neste blogue para três coisinhas

1) O meu amigo Tiago Leal precisa de trabalho. Uma das formas de o ajudarem a arranjar trabalho é gostarem duma ilustração dele no facebook. É assim que a empresa Princess Pea vai escolher o próximo ilustrador. Eu agradeço-vos...
2) Se ainda não estão fartos de ouvir falar do que aconteceu no Pingo Doce, podem ir ao meu blogue que ninguém lê. Se estão, não vão.

3) Podem também gostar do blogue do João Branco, num concurso de blogues de Cabo Verde. E prometo que não vos chateio mais...